A calma do Sr. Pickwick

20

Há meses que carrego comigo um pesado (pesadinho, vá) livro em cuja lombada se lê “DICKENS” em grandes letras vermelhas. Trata-se d’Os Cadernos de Pickwick, numa belíssima edição Tinta-da-China. Apesar do seu tamanho, ou melhor, do número de páginas bem maior do que eu estou habituado, sinto-me mal por ainda não ter chegado ao fim. Estou perto, e posso dizer que é dos melhores livros que já li. Mas então, porque é que ainda arrasto a leitura? Pickwick, ele próprio, também parece não ter pressas, não faz parte do seu carácter perder a paciência ou entrar em desespero. É o tipo de homem que está disposto a passar o resto da sua vida numa prisão de devedores, apenas por princípio, apesar de ter mais do que dinheiro para pagar uma dívida que considera injusta.

À excepção deste último acto de orgulho, acho que me poderia comparar a Pickwick, se a Pickwick chamássemos um homem lento. Ou melhor, vagaroso.

Leio devagar, também sem pressas. Tal como à mesa, ou na cama antes de sair de casa pela manhã, não penso nunca num futuro demasiado próximo. Leio devagar, e desde que comecei a ler as aventuras do cavalheiro inglês, fui acumulando uma lista de livros que quero ler depois deste. Fui lendo alguns em simultâneo, mas a dimensão da minha lista de must-reads foi-se tornando assustadora. Ainda não acabei este livro e já me questiono sobre qual ler a seguir. De forma calculista, equaciono os prós e contras de cada um, tenho medo de perder tempo com o livro errado. Vou lendo também jornais e revistas, sabendo que o Pickwick me espera, sentindo que o estou, de certa forma, a traí-lo. Tento dividir a minha atenção de leitor por temas variados. Design, ficção, actualidade, jornalismo… Já que me demoro tanto nas aventuras descritas por Dickens, é bom que o resto das minhas leituras não sejam em vão. Na internet, a verdade é que também se pode ler muito e bem, e até as coisas mais insignificantes podem ter um grande interesse. Por isso quando não estou simplesmente à espera de uma notificação ou de mais uma conversa inútil com alguém, o tempo aqui não é perdido.

Mas o Pickwick está aqui ao lado à espera, começo a encara-lo como um dever.

Esta distracção é natural e até produtiva. Hoje, o conhecimento adquire-se cada vez mais através de soundbites e pequenas vinhetas de texto dispersas do que propriamente da leitura de grandes obras. Colecionamos conhecimento. Também não há a necessidade de decorar nomes e datas porque a memória de bolso que é a internet trata disso na maior parte dos casos. Isto é bom, porque deu-nos a oportunidade de nos focarmos em processos de aprendizagem mais aprofundados e críticos. É mau porque reduziu a nossa capacidade de atenção. Não é novidade que a minha geração é a do acesso e retorno instantâneos, do imediato, do stress com os tempos de loading. Experiências de leitura prolongadas são encaradas com reticências. Mas é nestas experiências, como em Dickens ou numa reportagem longa, que reside um conhecimento que não pode ser adquirido através de nenhuma memória de bolso. Em primeiro lugar por causa do próprio acto da leitura — lento, prolongado e exigente (por vezes cansativo). Depois pela quantidade e profundidade do tratamento dos temas que o imediatismo nunca pode dar.

Ufa! Acho que a minha demora está desculpada…

Curiosamente, comecei há uns dias a ler o “Mito de Sísifo”, de Albert Camus. Fi-lo porque, a propósito do seu centésimo aniversário caso estivesse vivo, li vários artigos sobre a sua obra, da qual nada conhecia. Reduzido à minha ignorância no assunto, comecei a alterna-lo com o Pickwick. Depois pensei na quantidade de artigos que não li sobre outros autores. Por preguiça, por simples desatenção idiota, provavelmente distraído por uma qualquer frivolidade cibernauta. Quantos Albert Camus me passaram por debaixo do nariz, e poderão estar assim excluídos para sempre, ou para tarde demais, da minha lista? Quantas vezes me esqueci do efeito borboleta que isto causa? Só mesmo por idiotice… Porra, e a minha lista já vai tão grande! Quando é que eu vou ler isto tudo? Mais os jornais, revistas, manuais, ensaios, coisas da escola, da casa, do trabalho, da lei, do fisco, da mercearia. Obviamente, é impossível. Para mim, é impossível. Fala Camus, na obra referida, sobre (mais ou menos) isto quando se refere ao absurdo. O absurdo que surge, por exemplo, do confronto entre a vontade de conhecer tudo e a impossibilidade de o fazer. Neste caso, falo da impossibilidade de ler tudo. Ou se calhar é só vergonha de entrar no metro todos os dias com o mesmo livro na mão. Esta pressa que ganhei é minha ou é dos outros? De qualquer das formas, a lista é infinita, como é a biblioteca. Mais vale ter calma.

Não me estraguem é o Pickwick!