A segunda voz: Quando a casa é a extensão do corpo

nageur-sous-leau-esztergom1

Underwater swimmer”, André Kertész, 1917

A verdade é que houve um tempo
em que eu olhava para fotos de outro ângulo:
paciência, entendimento, materiais
que não se estraguem com o calor, a fricção.
Mas depois envelheci, tornei-me cínico.

É o próprio tempo que Vítor Nogueira acaba por expor no seu último livro de poesia, Segunda Voz, lançado já no passado mês de Abril, pela editora Averno. O curioso é perceber como a nossa própria linha temporal pode ser compreendida através da forma como olhamos para um simples retrato, tal como nos fala o poema Sombra. Quando, no início, o cinismo está longe e os retratos não constituem mistério porque os sótãos que guardam a nossa infância e o resto da nossa existência ainda não foram construídos. Ou melhor, é como se nesse momento primordial vivêssemos dentro das nossas próprias águas furtadas e, por isso mesmo, não sentíssemos a distância que nos separa do que tão bem guardam e lá permanece esquecido. Daí a névoa que depois se interpõe e nos impede de reconhecer quem é aquele que posa para a fotografia. A fotografia que volta a nós diluída e envolta num negro irreversível.

Quem és tu, por trás da sombra, nesta foto
rejeitada que chegou à nossa mão?
Como eram os teus sonhos?
Quem te amou?
Quem te chora desde o dia em que morreste?

Dividido em duas partes, A casa por sob o Sótão e O Sótão por sob a casa, os próprios títulos dos poemas remetem-nos para uma infra-estrutura que se vai construindo, a pouco e pouco, quase que de forma independente. Uma habitação que não escapa à Erosão, mas que é constituída por uma Clarabóia, uma Varanda, um Tecto e Paredes que albergam Versos, Caixas, resquícios de um Domingo, uma Bicicleta e Vozes. Memórias que vão, elas próprias, assumindo uma componente mais visceral e orgânica porque há nesta casa Sangue que pulsa e Mandíbulas que podem muito bem formar uma boca que morde e comprime. Como se, no fundo, a casa que Vítor Nogueira nos apresenta tivesse, ela própria, consciência e respirasse.

Ainda há vida no interior destas amostras,
nesta pilha de sucata retirada peça a peça.
Estás a olhar para o passado, um carnívoro gigante
com sentidos apurados e mandíbulas vigorosas
que comprimem o futuro até ao osso.

A poesia desta Segunda Voz, que quer encontrar expressão, não é meramente do quotidiano. Não podemos encerrá-la nesse epíteto. É, em si mesma, desassossegada e não se abstém de transmitir o seu tormento, nem que venha servido com um copo de Whisky.

Não te livras do turno
da noite, dos pensamentos neuróticos da tua cabeça,
uma espécie de monólogo das aulas de teatro. Mas
quem sabe o que o passado te reserva para esta insónia?
Pode ser whisky, ou preferes algo mais frutado?

Embora, num primeiro embate, possa ser essa a impressão porque evoca momentos e memórias precisas de um dia-a-dia, a suposta ideia desse quotidiano volta-se para dentro e não podemos deixar de reparar como há uma consciência pessoal que se vai elevando. Uma consciência que, de repente, por já ter passado por um processo natural pelo qual todas as consciências têm de passar, estivesse mais interessada em escavar e ver qual a base que sustém e segura a própria base da casa do seu corpo. Ou então, para sermos mais precisos, subir até ao sótão e descobrir o que se perdeu.

Eras demasiado novo
para todos aqueles livros, todos aqueles ossos
arrumados nas estantes. Livros como este,
que se fecha sobre si e só dói a quem o escreve.

Podemos ler em Formol, justamente o poema que encerra o livro.

Tal como um corpo se enche com o seu inconsciente, tem o sangue como principal combustível e os ossos como a base, assim é uma casa com a sua estrutura. Não deixa, no entanto, de presenciar memórias que imortaliza a formol, apesar de lhes faltar a matéria. Ambos os corpos, tanto o carnal como o que é construído a tijolo, não deixam de passar por três momentos distintos. Aquele em que as memórias são vividas, tanto as da infância como as de um passado mais recente; aquele em que ninguém escapa ao cinismo e passa a ver mistérios e sombras irreversíveis nas fotografias e, por último, aquele em que já se vê a noite. Estes momentos encontram-se de tal forma entrelaçados que não se sabe bem quando o tijolo acaba para dar lugar ao sangue, mas afinal é tudo sobre o tempo. Essa entidade que não pára e se aproxima “depressa da hora dos morcegos”.

Mas voltando às fotografias, o que será a segunda voz, senão “qualquer coisa a mexer na escuridão”?

Segunda Voz”, de Vítor Nogueira
Capa de Daniela Gomes.
Paginação e composição gráfica de Inês Mateus.
Averno 066, 2014.