A vida desgraçada de Sebastião Lucas é uma ficção mensal da autoria de Ana António. Ao longo de um ano serão publicados doze “fascículos” de três episódios cada.

A vida desgraçada de Sebastião Lucas I

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Entre o momento em que escrevi sobre a morte desmaginada do meu avô João e a morte confirmada de Sebastião Lucas tive tempo de interromper. Intrometeu-se nisto tudo uma rotina diária, conflitos horários, relógios de plástico, presentes de aniversário, aniversários, um aquecimento central sem contas certas com o sopro entre os vincos da moldura das janelas, o vento, a cerveja, três horas de trabalho de manhã, uma hora e meia de almoço e roupa para estender, a idade, a desigualdade, a prescrição social,
o jornal, quatro horas de trabalho e meio durante as tardes, a primavera invernal,
o carnaval depois do natal, as fotografias do ano passado, laranjas, uma tentativa de madrugar, uma tentativa de jantar sem discussão, a inexperiência, uma ida à Alemanha, o telefone, o computador, o avião, uma explosão, os foguetes da festa, a torradeira,
os vincos das camisas, o pijama do Batman, o sono, a casa dos avós, a casa da avó,
o aniversário do elefante, o meu amor, a minha vida, o meu filho, a vida deles, espargos, o primeiro-ministro, o vice primeiro-ministro, o ex-primeiro ministro, os afectos desempregados do país, uma lista, uma toca-lista só ouvida na fugida, os melhores álbuns de 2014 da Pitchfork, e as mortes, de que nunca recuperaremos. E se há mortes em acção também há histórias de gente que se determina em desaverbo e contradição.
E isso faz-me frustração, a descoragem de viver e acordar com o pecado do passado, todos os dias até morrer. Para quê tanta labuta se nos deixarmos descair de infelicidade conformada. Entre parágrafos toda a minha percepção sobre a vida e a morte mudaram, sem mudarem a vida acabada de Sebastião. A vida não pode ser a espera, a espera por reunir recursos para produção de vida continuada. Mas esclareceremos esta confusão quando nesta história chegarmos à invenção do bolo de limão da vizinha muda e calada, de ortodoxo impulso religioso, que recusou amor ao irmão do padeiro para quem trabalhava e morreu repensada. Se há mortes em acção também há vidas de gente cancelada. Mas e talvez haja gente, sem controvérsia, que talvez queira apenas viver uma vida sossegada, o que não foi o caso de Sebastião.

A vida de Sebastião Lucas começa com o regresso ao ponto de que todos partimos
a inexistência.

 


 

001

 

Chegado ao fim, Sebastião, deitado e pálido, olhava o mundo através das suas pálpebras de morto. Nunca a morte me tinha feito tanta impressão como a morte de Sebastião.
E nunca eu tinha tido tanta coragem de enfrentar o medo de que aqueles lábios
colados com saliva seca e as pestanas murchas se abrissem de repente numa
gargalhada sarcástica.

Lembro-me de ver os pés do avô atados um ao outro, as mãos em posição de mergulho ou em posição de elevação aos céus, dependendo da religião. Ainda hoje me faz arrepio, de noite, deitada, encontrar-me naquela posição de morto, mudo de repente para outra posição qualquer, uma posição de vivo. Sei que disse que nunca tinha tido tanta coragem para enfrentar a morte há duas frases atrás e é verdade, porque da primeira vez escapei-me do confronto. O avô João morreu, e eu tinha dez anos. Não era o avô do colo, que queríamos que fosse, também de pai não tinha sido assim, era daqueles adultos que cresciam em frente às crianças como árvores autoritárias e que contornávamos, ele, às vezes de longe, brincava connosco, principalmente quando foi ficando mais velho.
O outro endoideceu antes que tivesse tempo de lhe medir a distância das canelas até à testa. Então só tínhamos o avô João, que tinha quase dois metros de altura. Lembro-me que vínhamos de carro com a mãe e estacionámos e vieram a correr, e antes de abrir as janelas às caras desmaiadas de desgosto e às bocas todas abertas ao mesmo tempo apressadas pela notícia, soubemos.

Entramos em casa e alguém nos disse para nos despedirmos do avô, tive frio e fui
a correr buscar o casaco. Como é que se se despede de um já morto?

E agora estou aqui em frente à morte a despedir-me de Sebastião.

 


 

002

 

Sebastião queria ter sabido que a morte estava para lhe acontecer. No café havia comentado. Para ele todos devíamos ter tempo de morrer. Estava farto de perder-se
no mundo sem saber os prazos de validade das vidas com que se cruzava e assim de rompante receber telefonemas de gente chorosa a dizer que o não sabe quantos se tinha ido desavisado. A morte ainda não lhe tinha roubado gente muito importante, mas passava-lhe devagar pela espinha enquanto o tempo passava e alguém telefonava.

Um dia apaixonou-se por uma mulher casada. Uma coisa tonta. Ficava a ver-lhe as pernas ao longe, enquanto ela tratava dos filhos. Nunca lhe falou de romance,
falava-lhe simplesmente e era suficiente. Não vivia cá, só a via de férias, e um dia
viu o marido chorar. Perguntou-lhe e fugiu ocupado, para chorar ele, sozinho.
A morte era assim. Sebastião ficou carregado, durante meses, com aquele carinho magoado. Todos devíamos ter tempo de morrer, assim como temos tempo de nascer.
Aumentou-se-lhe a vontade de regularizar aquelas situações com a morte inesperada dos outros. Mas se alguns chegam até ao tempo de perder os dentes sem nunca irem ao médico, vão lá à primeira e à segunda já ficam com a morte agendada, comentavam-lho no café, mas o coração doído de Sebastião revoltava. Isso era coisa para corpo velho.
E quem está doente e sabe que vai morrer tem bom tempo de viver para morrer.
Fazia-lhe sentido dizer tonto do que diziam, por não ter, ele muito novo, amadurecido sobre a perda do abraço daquela mulher. E ficava ali, em preocupação a pensar, numa forma de se precaver de mortes repentinas que magoassem muito.

Sebastião haveria de morrer sem tempo de precaver a gente que o choraria até fechar
o coração.