Ari o Burro | A independência

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Com maior ou menor duração tudo na vida acaba por se extinguir. É com esta premissa sempre presente que Ari (o Burro) resolve ser dono do seu futuro e emancipar-se. Não se trata de assumir um posto de trabalho, de ser um dos dois que compõem um casal, trata-se de se assumir como unidade, largar o título e conforto de ser filho de. Compreenda-se também que este poderá sempre ser um caminho penoso. Da necessidade de pertencer à incapacidade dos progenitores de saber libertar as poses de tirania. Foi sempre uma questão de quem seria mais burro.

Nesta pouco saudável competição pelo trono, duas equipas usavam as suas armas e sem dificuldade se percebia a razão pela qual cada um dos jogadores se motivava contra o adversário. De um lado a primeira equipa dividia-se em dois elementos, os dois cônjuges, com vantagens como a experiência e o realismo na abordagem de problemas mas sofrendo de um grave problema de vista curta, originado por outras batalhas entretanto perdidas com a vida. Do outro lado, a irreverência e falta de ponderação de um Burro que aspirava ao céu, com uma visão completa do mundo mas sem a objetividade necessária para cumprir objetivos.

Não se pense que foi sempre assim. O Burro ainda tem lembranças, embora cada vez mais longínquas, de quando o conflito não existia. As aldeias, os coretos, os foguetes e os ciganos com armas de plástico à venda. E até de andores o Burro gostava. E de Onda Choc. O vento corria a favor no reino de sua majestade D. Burro I e nem a eletricidade que se sentia no ar fazia prever a tempestade que se seguia.
Por mais redundante que pareça, foi numa quente tarde de Verão que o Burro pai desapareceu. Sumiu levando com ele o resto do Verão e outros que se haviam de seguir. Ficou o tempo livre e o silêncio de quem ainda não percebe bem a perda. Ficou a solidão de quem não se foi, de quem esteve sempre ali! E haveria de voltar, sua majestade. Voltou dizendo que apenas se recordava de sombra à ida e da sombra que se foi após a chegada.

Enquanto tentava manter vivas as memórias, enquanto ainda ouvia clarinetes e xilofones, o Burro filho procurou aquele que desapareceu na sombra mas a visão sai surpreendentemente afetada pelas palmatórias e incentivos à privação do sono. Rasgou Sonetos, que é como quem diz que aprendeu a esquecer. Mas diz quem sabe de burros que se estes rasgam sonetos é porque querem chamar à atenção. E essa, ele nunca iria ter de sua majestade.

Tardou a perceber, o nosso jumento, que se queria assumir-se como tal, teria de o fazer pelos seus próprios cascos. Um Burro, embora aparente uma vida pouco complexada, também se constrói por partes. E quando faltam partes, não deixando de existir, existe de outra forma. Sempre que quis que olhassem por ele, olhou-se ao espelho.