Bissexualidade para Totós — Parte 1/2
Apercebi-me recentemente que muita gente à minha volta era francamente ignorante em relação a bissexualidade.
Isto supreendeu-me imenso porque sempre achei que me movimentava em círculos sociais bastante tolerantes e privilegiados, o que me levou a pensar que talvez seja um mal geral. Assim, ainda que eu própria tenha alguns problemas com o termo (por razões que explico mais abaixo), quando valores mais altos se alevantam eu e a bissexualidade fazemos tréguas e defendo-a de punhos cerrados das investidas cepticistas!
Dito isto, vou introduzir alguns gatos à discussão:
Orientação sexual é a qualidade que leva uma pessoa a sentir-se atraída de forma romântica e/ou sexual por pessoas de uma, ou mais identidades de género. (Identidade de género é a consciência pessoal de que se é um homem, ou mulher, ou algo que esteja entre, ou além, destas duas categorias. Esta consciência não é necessariamente correspodente ao sexo biológico.)
Orientação é habitualmente definida por um destes 4 termos: heterossexual, homossexual, bissexual e assexual (este último no caso de pouca ou nenhuma atracção sexual e/ou romântica por outras pessoas).
Como sociedade, muitas vezes tendemos a intelectualizar a vivência sexual como uma dicotomia, porque a torna mais fácil de perceber. Ou se é heterossexual ou homossexual. Ou jogas numa equipa ou na outra. Ou sim ou sopas. Mas, na verdade, é bastante mais correcto pensar em orientação como algo que gravita num continuum. Ou seja, não é tanto uma questão a preto e branco, mas mais como um degradé bonito como este que eu fiz no photoshop:
A ideia de que não há uma divisão rígida entre heterossexualide e homossexualidade não é nova. Provém de investigações sobre sexualidade feitas por Alfred Kinsey em 1940, quando identificou sujeitos que não encaixavam estritamente na dicotomia heterossexual/homossexual. Kinsey criou uma tabela para medir a sexualidade humana, com uma gradação de 0 a 6, sendo 0 Exclusivamente Heterossexual e 6 Exclusivamente Homossexual. (A termo de curiosidade, Kinsey também criou classificação para indivíduos assexuais.) Isto acabou por ser um ponto marcante na pesquisa sobre bissexualidade e no entendimento de orientação sexual como um espectro, questão que continuou a ser investigada e é relativamente consensual nos dias de hoje.
Se tivesse de definir o termo seria:
Tendência para uma pessoa se sentir atraída de uma forma sexual e/ou romântica por gente de mais do que uma identidade de género.
Acho que esta é a definição mais simpática porque não implica que alguém bissexual goste de homens e mulheres da mesma maneira, nem ao mesmo tempo, nem com a mesma intensidade. (E também não implica que se goste só de homens e mulheres, abrindo portas para identidades de género alternativas.)
O problema (ou vantagem, depende do ponto de vista) é que bissexualidade não tem um significado muito claro e decisivo. É possível encontrar definições diferentes, de pessoa para pessoa, de livro para livro, de blog para blog.
A palavra foi inventada na primeira metade do século XIX para designar um indivíduo hermafrodita.
Actualmente a definição é muito mais vasta, e ainda está aberta a discussão. Ou seja, quando alguém se identifica como bissexual, tem alguma margem para manobrar os limites do que, para si, isso significa.
Homossexual, Bissexual, Heterossexual (e por aí adiante…) são categorias muito gerais que tentam circundar algo que na verdade é muito subjectivo e cheio de nuances: a tua sexualidade.
Por isso, quando alguém diz que é bissexual não quer dizer que essa pessoa vá ter uma vivência sexual e romântica exactamente igual a todas a outras pessoas que se identificam com o mesmo. Apenas quer dizer que essa pessoa acha que este é o termo do nosso léxico que está mais próximo de descrever o **floco de neve único e maravilho que é a sua orientação.**
Nada disto impede que, com o tempo, essa pessoa não se aperceba que afinal bissexual não é o melhor termo para se descrever. Pode mudar de ideias. Pode decidir que afinal é uma krisbian. Pode até inventar um termo novo que traduza completamente a sua subjectividade sexual, tipo um rapaz que eu conheço chamado Rocco que dizia que era “roccosexual”. Também é possível que descubra que afinal não precisa de usar palavra nenhuma.
Pessoalmente, admito que caio neste último grupo. Às vezes pôr nomes às coisas parece-me demasiado vago e redutor e preferia que ninguém fosse nada SOMOS TODOS PESSOAS QUE GOSTAMOS DE OUTRAS PESSOAS PORQUE É QUE TEM DE HAVER CATEGORIAS E DEFINIÇÕES NÃO PODEMOS TODOS DAR AS MÃOS E CANTAR O KUMBAIÁ?!
Mas isso sou eu.
Percebo que, para muita gente, ter uma palavra que os classifica é super importante para se sentirem validados e serem capazes de partilhar uma parte da sua identidade.
Dito isto, só quero frisar que, como te identificas e quando decides identificar-te (e isso pode alterar ao longo da vida) é uma escolha só tua. Outras pessoas podem ter as suas opiniões sobre ti, e muitas vezes vão ser inconvenientes o suficiente para te dizer na cara que não acham que sejas o que dizes ser. Mas são só isso, opiniões. Se fores verdadeiro e íntegro contigo próprio, corre tudo bem.
Toda a gente, e sublinho, TODA A GENTE que começa um relacionamento monógamo com outra pessoa está de certa forma a escolhê-la em detrimento de outros possíveis parceiros sexuais e românticos.
Só porque uma mulher heterosexual se casa com um homem, não quer dizer que não continue a sentir-se atraída por outros homens. Mas achar outros homens sexy não a impede de se sentir realizada e feliz numa relação exclusiva com o marido. Uma relação monógama com um bissexual é exactamente igual.
Para além disso, é um bocado redutor dividir todo espectro de pessoas em duas categorias: ou homem ou mulher. Não só pelo que disse acima acerca das pessoas não se identificam nem com uma coisa nem com outra, mas porque também significa que estás a pôr toda a gente do mesmo sexo na mesma gaveta, e isso é um bocado estranho: As pessoas são diferentes, mesmo as que têm o mesmo tipo de genitália! Homens e mulheres vêm em todos os tamanhos, feitios, penteados e personalidades. Mesmo que toda a tua vida vás ter relações com pessoas do mesmo sexo, vão ser diferentes: psicológica e fisicamente.
Não vais sentir que, ao ter começado a namorar com o Tomé, tiveste de escolher que a tua orientação são homens morenos, baixos, que gostam de ler Sartre. Ninguém vai achar que as tuas relações anteriores com rapazes loiros e altos que sabem tocar guitarra foram só uma fase experimentação, e que agora é que estás no bom caminho.
Seria alarmante que alguém pensasse que mais tarde ou mais cedo vais deixar o teu namorado por outra pessoa, porque ele não é loiro nem alto em não sabe tocar guitarra e, portanto, não te está a oferecer a multitude de versões que um homem pode ter.
[…] Na primeira parte deste artigo abordei algumas das questões básicas acerca de orientação e bissexualidade. Deixei para último estas, mais complexas. […]