De volta a Vila Real, pelo caminho mais longo

Michele voltou para Trás-os-Montes num tapete mágico

Há cinco anos, Michele Botelho Lopes ocupava uma posição de topo no Ministério das Finanças mexicano, e podia ser encontrada num jacto privado para uma conferência em Miami ou Nova Iorque, ou na firma de consultoria onde a sua equipa foi distinguida pelo Financial Times. Hoje, Michele Lopes acorda com o sol num apartamento em Vila Real, Trás-os-Montes, e, regra geral, às seis da manhã já está em cima do tapete de yoga. E garante que não é menos feliz — antes pelo contrário.

O dia de Michele começa quando se levanta o sol — é instrutora de yoga e não pode esperar por pôr os pés em cima do tapete. O seu quarto pouco mobilado só contém um par de colchões sobrepostos e um guarda-fatos. Prefere assim.

O minimalismo cai-lhe bem — de figura esbelta e cabelo escuro, Michele veste-se despreocupadamente e fala sem pretensões. Quando abre a porta do quarto, já está no Espaço Ashtanga, a escola de yoga que escolheu abrir no seu apartamento, e que é, para todos os efeitos, a sua casa. “Cumprindo a tradição yóguica mais antiga,” explica Michele, acrescentando logo por cima: “Isto, agora não queria que soasse a presunçoso, mas na Índia sempre se ensinou que o aluno vai de encontro ao mestre na sua casa.”

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Indonésia

Em Vila Real como na Índia, portanto. Michele é vila realense e foi aqui que passou uma adolescência atribulada e feliz: aos dezasseis anos já tinha a primeira das tatuagens que hoje lhe cobrem os braços. Apesar disso, aos dezoito decidiu sair a estudar para Lisboa, partindo, sem saber, numa viagem que só a traria de volta mais de dez anos depois.

No final da sua prática yóguica matinal no apartamento quase sem móveis, e de uma sessão de meditação, bebe um chá, liga o computador e conecta-se com o mundo. A leitura regular de jornais de várias partes do mundo é um hábito antigo — data já de quando, no final do curso, começou a trabalhar em postos de cada vez maior responsabilidade em instituições financeiras. Foi através do seu trabalho no Santander Totta que conheceu o embaixador do México, que em 2005, impressionado com o seu desembaraço e as suas capacidades, lhe ofereceria um posto no governo mexicano. Em menos de uma semana, Michele Lopes, na altura com 25 anos, fizera as malas e partira para Hermosillo, no norte do México, para trabalhar no Ministério das Finanças.

 

“Dez minutos depois, estava absolutamente segura
de que ia praticar yoga para o resto da vida.”

 

Hoje, porém, as suas manhãs são calmas. Enquanto professora de yoga, a maior parte do seu trabalho passa-se no final da tarde e à noite, portanto tem as manhãs livres para dedicar algumas horas ao estudo dos textos de yoga. Uma rotina pacífica que contrasta com os seus anos em Hermosillo, onde passava as madrugadas no ginásio, os dias no Ministério das Finanças, os finais de tarde numa consultoria financeira, algumas noites em festa.

Outra coisa diferente é o tempo — quando chegou a Hermosillo a primeira vez, Fevereiro ou Março, já faziam 38ºC e os habitantes comentavam que o tempo estava fresco. No verão, Michele achava-se confinada aos ambientes climatizados de escritórios e apartamentos, mesmo com o sol a brilhar lá fora.

Não como hoje. Em Vila Real, nesta manhã de Maio, Michele está no Parque Corgo, diante de um grupo ecléctico de alunos em tapetes coloridos e roupas leves em cima da relva — uns a experimentar pela primeira vez, outros praticantes antigos da modalidade. É uma aula especial organizada pela Câmara Municipal para dinamizar os domingos no parque. Michele orienta, de cabelo escuro apertado, roupa esvoaçante e voz calma que se faz ouvir clara sobre o ruído do rio que passa a alguns metros de distância.

Aceitem o vosso corpo,” diz, especialmente aos principiantes que se esforçam por fazer as posturas do yoga. “Todos os corpos são diferentes. Uns de vocês terão muita força, mas pouca flexibilidade. Outros vão ser muito flexíveis, mas pouco fortes. Outros não terão nem força nem flexibilidade, mas terão muito equilíbrio. Outros ainda não terão nenhuma destas coisas, mas serão muito corajosos.”

Foi no México que Michele experimentou o yoga pela primeira vez, no ginásio que frequentava. Enquanto corria, habituara-se a ver as aulas de yoga pela janela. “Parecia-me uma seca terrível!” ri. “Vendo de fora, aquilo dava-me riso. Cada vez que eu olhava, eles estavam no mesmo sítio e na mesma posição. O que é certo é que eles saíam a pingar, a transpirar. E um dia eu disse: ‘Não é possível, meu, acontece alguma coisa lá dentro que eu não consigo ver daqui de fora.’” Levada pela curiosidade, foi experimentar.

Quem a vê hoje, a caminhar por entre os tapetes, tem dificuldade em imaginá-la a entrar na sua primeira aula de yoga. “A mastigar chiclete, à pintas, ‘tás a ver, à transmontana,” recorda Michele, e imita o seu pedido naquele primeiro dia, acompanhado do ruído do mascar da pastilha: “Posso fazer?” Não fazia ideia da paixão que estava prestes a encontrar. “Dez minutos depois, estava absolutamente segura de que iria praticar yoga para o resto da vida.”

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Marrocos

No final da aula de hoje, Michele pede aos participantes que se deitem no tapete para uma curta sessão de meditação. É quase meio dia, e o sol está a pique, mas ainda é cedo no ano para queimar. Procura talvez transmitir a quem hoje se junta a ela aquilo que sentiu na sua primeira aula, que descreve com alguma nostalgia: “Sabes aquela sensação quando passa o Inverno e, numa das primeiras limpezas de Primavera, tu limpas os vidros de casa? Tiras aquele pó que se acumulou, e quando limpas o vidro de repente tens a sensação de olhar e não saber se o vidro está lá ou não? Uma sensação de clareza. Nós em yoga chamamos-lhe consciência. É como se pela primeira vez olhasses para dentro e visses o quadro completo.”

 

“Já fizeste o que tinhas a fazer,
e fico muito feliz por ti.”

 

No fim da manhã, passada a chá e café, almoça o mesmo de sempre, desde há meia década: fruta, iogurte, cereais. Outro costume antigo é a sesta “sagrada” a que o calor abrasador do México obrigava. Hábitos, como a prática diária do yoga, que se mantiveram através do período de revolução na sua vida que se seguiu à descoberta da disciplina: o divórcio do primeiro marido, a mudança de governo no México que levou à sua saída do ministério, e a partida do país.

É mais tarde, a uma mesa da esplanada da Gomes, já de calças de ganga e casaco de cabedal, que Michele relembra essa partida. Ao redor, a calma de um domingo à tarde vila realense: carros esporádicos na Carvalho Araújo, o toque regular e ensurdecedor dos sinos da Sé, o burburinho de quem aproveita o céu limpo para estender as pernas.

É com a mesma paz que Michele lembra a fase conturbada da sua vida que culminou em Dezembro de 2010, quando o chefe lhe recusou as férias que ela pretendia para passar o Natal em Portugal. “Uma das coisas mais magníficas que me podia ter acontecido na vida.” Na mesma hora, Michele comprou passagens de ida para Lisboa, voltou ao gabinete do chefe e anunciou que se ia embora. “Ele começou-se a rir, disse: ‘Por um lado apetece-me esbofetear-te, por outro sei que isto não é lugar para ti. Tu tens que ir para a tua terra. Já fizeste o que tinhas a fazer e fico muito feliz por ti.’ Pronto, só isto.”

A mesma Michele que partira numa semana para o México deixou o país permanentemente em apenas quatro dias. Deu a mobília a um casal amigo cujas iniciais traz tatuadas no pulso, e deixou ao ex-marido a tarefa de vender o carro e a casa. Voltou para Portugal com menos bagagem do que a que tinha levado.

 

“Tento ensinar isso, a gratidão, e acima de tudo a compaixão, que é o amor sem absorção.”

 

Nesta sua nova vida, a azáfama maior começa ao final da tarde. Os alunos enchem o Espaço Ashtanga e a aula começa. Vêm pessoas de idades e níveis de experiência diferentes, para seguir a instrução de Michele. Desde que chegou a Vila Real no Natal de 2010, já passaram pelas mãos de Michele mais de 500 ou 600 alunos, nos diferentes lugares em que já ensinou. Hoje, entre o Espaço Ashtanga e os seus outros trabalhos regulares em ginásios da região, os praticantes regulares com quem já trabalhou chegarão aos 150.

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Indonésia

Além da disciplina física, o yoga é uma disciplina mental. Michele não descura nenhuma das partes, que considera indispensáveis uma à outra. E, tal como viu uma mudança em si mesma ao fim de dez minutos na sua primeira aula de yoga, também vê mudanças nos seus alunos. Não é ela que as faz, afirma, mas quer ajudar a “limpar os vidros.” “Tento transmitir que… Oh pá, que sejas grato, tiveste a oportunidade de vires cá, de teres voltado cá, numa cidade que tem água, luz, onde há paz, não há milícias armadas, não há toque de recolher. Tens terra fértil, vai cultivar batatas se for preciso.” Pausa, bebe um gole de chá de limão, e depois acrescenta num tom mais lento: “Tiveste a sorte de vir parar a uma aula de yoga, por isso a tua vida não pode ser assim tão dramática. Tento ensinar isso, a gratidão, e acima de tudo a compaixão, que é o amor com gratidão, em vez do amor com absorção.”

Essa necessidade de gratidão tornou-se-lhe mais clara quando visitou a Índia em 2012. “Nada te prepara para o que vais ver quando sais do aeroporto,” lembra. Compara Nova Deli a cenário de guerra, e fala lado a lado das crianças a dormir nas bermas das estradas e da beleza do Taj Mahal que a deixou em lágrimas. “A viagem que mais me marcou, porque quando voltei não sabia se tinha amado de morte ou odiado de morte, foi a Índia.”

Tem o hábito de partir no dia de Natal para os seus destinos pois os vôos são mais baratos. O dinheiro que poupa, guarda para viajar — para ver pequenas ilhas na Indonésia, ou para ir repetidamente a Marrocos. Entre tantos outros objectos que trouxe destas viagens, tem em casa um mala de meditação muçulmano, uma espécie de rosário também usado no budismo. “É uma peça quase guerreira, com umas pedras gigantes, que me foi dada por um berbere no Saara. Estávamos em conversa sobre meditação, e ele tirou aquele colarzão…” Recorda a história com um sorriso aberto. “Os berberes são homens muito impactantes, grandes, morenos, cobertos de colares, anéis, pulseiras. São muito exóticos. E aquele bicharoco tira o colar e dá-mo e diz: ‘Eu sei que farás com ele o mesmo que faria eu.’”

 

“Acho sinceramente que onde quer que esteja vou ser feliz.” Que cabra. Foda-se.”

 

A noite já está escura. É o final da aula e o Espaço Ashtanga esvazia-se. Volta a ser um apartamento vila realense. Faz quatro anos que Michele voltou para Vila Real, mas ainda se lembra distintamente de um amigo que fez pouco depois de chegar, que se mostrou espantado, quando os dois se conheceram, por Michele ter trocado uma entusiasmante vida no México pela pacata cidade do interior. “Eu respondi que acho sinceramente que onde quer que esteja vou ser feliz,” conta. “E ele respondeu logo: ‘Que cabra! Foda-se!’”

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Brasil

É sem complexos que Michele reproduz as imprecações: afinal, é transmontana, com um sotaque discreto mas presente, e diz achar piada à linguagem malcriada que caracteriza os locais. “Somos duros, sabes, ou pelo menos gosto de pensar que somos, que somos rijos,” afirma. Mas contrapõe a maneira rude de falar e de se apresentar aos traços mais suaves: “Um transmontano bem-disposto é garantia de um dia feliz.” Nessas coisas diz-se muito transmontana, mas, por outro lado, diz que estaria bem em qualquer lugar.

Amanhã de manhã, Michele Botelho Lopes vai voltar a levantar-se de madrugada para praticar yoga em cima do tapete. Isso, pelo menos, tem sido certo. Quanto ao resto, a vida de Michele vai sendo transportada por um dos princípios essenciais do yoga: a impermanência.