Entrevista | Noiserv

Tal como se constrói um puzzle, peça a peça, assim Noiserv foi compondo o lote de canções de Almost Visible Orchestra, lançado no passado mês de Outubro,  camada a camada. Se fecharmos os olhos podemos esquecer o facto do disco ser de uma pessoa só, David Santos, e é aí que a “pequena orquestra” que o acompanha começa, lentamente, a tornar-se visível perante nós. Não, a capa e o título do disco não foram escolhidos ao acaso, até porque o David  só gosta de pensar nesses pormenores depois de ter as suas músicas prontas. São perceptíveis  laivos de melancolia neste seu último projecto, sim, mas esse lado melancólico não é percepcionado pelo David como fazendo parte de uma tristeza, pelo contrário. Chega a lembrar, até,  que os temas de Almost Visible Orchestra são mais mexidos e ritmados que os temas do disco anterior. Foi o que me revelou numa conversa que tivemos há dias por telefone.

A coisa que para mim ficou desta entrevista, apenas porque é um assunto em que tenho pensado muito, foi o facto de ter dito o seguinte: “tem de se arriscar sempre alguma coisa e se ‚depois, correr mal, a pessoa pode sempre arriscar outra vez.” Esta afirmação remete-nos para a batalha interior mais antiga de sempre, a da ideia e a concretização dessa mesma ideia. Mas, mesmo que se tenha medo de falhar, o melhor é atender àquela vontade visceral de se fazer o que é importante para nós, com a mesma expontaneadade com que se vai à cozinha beber um copo de água para matar a sede: é-nos impossível abdicar dessa acção. Continuar acaba por ser uma inerência, por isso é que o recomeço acaba por ser bom e libertador: quer se falhe ou não, isso não importa. Acho que já percebi, portanto, sem mais delongas, façam o favor de ler a entrevista.

Fotografia: Vera Marmelo

Fotografia: Vera Marmelo

O nome do teu último álbum, Almost Visible Orchestra [A.V.O], acaba por reflectir na perfeição o corpo de músicas que o servem. Não esquecendo o facto de que fazes uso do loop, as músicas estão de tal forma cheias que mais parece que tens uma pequena orquestra a acompanhar-te.
O título acabou por ser uma consequência do resultado final do disco. Não gosto de titular antes de ter as próprias músicas. Quando me apercebi de que os temas em questão estavam de tal forma cheios — capazes de criar a ilusão de que tinha uma orquestra de pequenos instrumentos atrás de mim — achei que seria esse o título mais indicado. À partida, sabia que as músicas iam ser mais densas e complexas que as anteriores, no entanto, só depois de as compor, é que percebi que isso tinha acontecido. O título que mais sentido faria seria esse.

O próprio processo de composição das músicas deve ser semelhante ao processo de montagem — ou construção — de um puzzle.
Sim, sim. Até a ideia do puzzle na capa advém, um pouco, do processo de construção dessas músicas. Cada tema é, se calhar, dentro dele próprio, um puzzle. Depois o disco, como agrega o conjunto dessas músicas, acaba  também por ser um puzzle. Quando pensei numa capa para o disco pensei que essa seria a indicada, tal como aconteceu com o título.

Como surgiu a ideia colocar Rita Redshoes, Luís Nunes [Walter Benjamim], Luísa Sobral, Francisca Cortesão [Minta], Afonso Salvador Menezes [YCWCB] e Espori na mesma música? É que são muitos e colaboram todos no mesmo tema — I was trying to sleep when everyone woke up.
A ideia veio do que essa música é. Para mim, fala da importância da amizade e de não estarmos sozinhos no mundo: de termos uma série de pessoas à nossa volta. Quando estava a compor a música e a escrever parte da letra percebi, rapidamente, que era bom não a cantar sozinho — ter alguém para a cantar comigo. Não pensei, apenas, em mais alguém para fazer um dueto mas, sim, num conjunto de pessoas. Quando comecei a  ver quem gostaria de convidar, tentei pegar em todos aqueles  com quem me tenho cruzado nestes últimos anos — com os quais tenho sempre trocado esta impressão, “olha podia ser fixe um dia fazermos uma coisa qualquer”. Achei que esta seria a altura ideal e decidi juntar essas pessoas todas numa música — foi assim.

Há uma ideia de reconstrução latente no Almost Visible Orchestra. Até pela expressão “I’ll try again” que se repete em alguns temas.
A questão desse sentimento estar presente nas músicas não quer dizer que conviva melhor com ele. Deves tentar dar sempre o teu melhor naquilo que fazes mas, não é por as coisas não correrem tão bem – por alguma razão em concreto – que  não devas começar de novo. Não é que o disco seja uma temática contínua, sempre em torno da reconstrução, mas cada vez mais acho isso. Sempre que se faz alguma coisa, para sair em condições, é preciso arriscar.  Tem de se arriscar sempre alguma coisa e se ‚depois, correr mal,  a pessoa pode sempre arriscar outra vez. Este disco não  advém da ideia, “tudo correu mal e agora vou-me reconstruir”, não é isso. A temática é a seguinte: se isso acontecer, porque não tentar outra vez?

Mas isso interliga-se com a insatisfação permanente de quem cria. Há sempre aquele sentimento de que as coisas poderiam estar, ou ser, de uma outra forma.
Exactamente, sim. Como é o meu segundo disco e as pessoas tinham gostado bastante do primeiro, talvez, inconscientemente, tivesse medo de que a coisa pudesse correr mal. Esse receio acabou por ser transferido para as letras de algumas das músicas.

Há duas músicas cujas letras prenderam a minha atenção de forma especial. Elas são, Don’t say hi if you don’t have time for a nice goodbye e Life is like a fried egg, once perfect everyone wants to destroy it. Explica-me o conceito por trás destes temas. Achei piada, principalmente, à primeira música porque, para mim, relaciona-se com a noção de tempo.
Na primeira que apontaste, a ideia da música reflecte-se no que diz o título. Fala da importância que as pessoas que já conhecemos há muito têm na nossa vida. Aqueles de quem já somos amigos, ou conhecidos, há tanto tempo que, se um dia tivermos de nos despedir, parece que já tivemos tempo suficiente para o fazer. Acaba por estabelecer uma oposição, de certa forma, até a esta coisa nova das redes sociais  e das amizades muito rápidas. Às vezes, uma pessoa parece estar  rodeada de muita gente mas se, no fim, precisar de algo, parece que não tem ninguém. A segunda fala daquilo que abordámos antes: a ideia de que quando estás a fazer algo da forma como querias, 10 minutos depois já não achas o mesmo e queres começar a fazer de novo. Se calhar, nós próprios, gostamos de desfazer esse objectivo e criar um outro ainda mais complicado. A analogia com o ovo estrelado vem dessa ideia de que, quando parece que tudo está feito como nós queremos, afinal não está e temos de recomeçar outra vez.

É perceptível uma réstia de melancolia em A.V.O. Quem escreve e compõe de forma mais melancólica ou triste, é recorrente dizer-me que não é assim na vida real. Acontece o mesmo contigo?
Até acho que as minhas músicas são uma tradução mais ou menos fiel daquilo que sou na vida também. A parte da melancolia não a vejo como parte de uma tristeza, vejo-a como uma necessidade de sentir as coisas de forma intensa e sempre à flor da pele. Nesse aspecto, acho que na vida real também sou assim. Para as pessoas que acham as músicas ou o disco mais triste, não serei assim tão triste como vocês acham que as músicas são. A questão, para mim, é que os temas não têm essa tristeza e acabam por ser parecidas àquilo que sou na vida real, percebes? Até acho que neste disco as músicas são mais leves, mais mexidas e mais ritmadas do que no disco anterior. Se calhar, porque estou numa fase da vida mais concretizada, portanto, as musicas acabam por reflectir isso. Neste caso, até acho que sou bastante parecido com aquilo que as músicas dizem.

Mas como acabas por lidar com essa melancolia? É algo que se vai apaziguando ao longo do tempo?
Acho que depende do estado de espírito da pessoa, no dia-a-dia. A mim, não me faz confusão nenhuma. Nem sequer penso muito como hei-de lidar com isso. Desde que me conheço que sempre fui assim, portanto, é uma coisa com a qual lido bem, é normal.

A intimidade de que fazes uso em Noiserv, um projecto a solo, achas que seria possível nos You Can’t Win Charlie Brown [YCWCB]?
A intimidade de alguém que, sozinho, mostra o  seu trabalho às outras pessoas, é totalmente diferente caso seja um grupo de seis elementos a fazer o mesmo. O nível de intimidade, cunho pessoal, que Noiserv tem, acho que não seria possível nos YCWCB, precisamente porque somos muitas pessoas. As emoções estão a ser, a seis, partilhadas com o público. Esse nível de intimidade, acho que só é mesmo possível com um projecto de uma pessoa só. Não é que seja por isso que goste de fazer tudo sozinho neste projecto, mas foi assim que as coisas foram acontecendo e é assim que agora fazem sentido.

Tenho reparado que os vídeos de animação em Noiserv são uma constante. Porquê?
Acho que, acima de tudo, os vídeos vêm de uma necessidade de se criar um mundo paralelo para o qual aquelas músicas sejam a banda sonora. Nestes vídeos que tenho feito, tenho-me apercebido de que com animações de pequenos bonecos, pequenas coisas, essa ideia de realidade paralela é mais facilmente conseguida. É mais ao menos por isso que os vídeos têm seguido essa linha, embora não tenham de ser sempre assim. Estas músicas têm puxado sempre para essa linha mas, se calhar, uma música diferente poderia ter uma resposta diferente. Há temas em que fará mais sentido ter pessoas e não bonecos. Não é uma regra que eu tenha sempre de seguir. Por acaso, até agora, os vídeos têm seguido, mais ou menos, essa linha.