Entrevista | “Os Idiotas” de Rui Ângelo Araújo são, afinal, afectuosos
Um título que funciona como uma provocação e dá azos a interpretações ambivalentes, principalmente nos tempos que correm. A verdade é que todos guardamos para nós uma definição bem própria do que é um Idiota e, por vezes, torna-se difícil escapar-lhe. Mas é por essa mesma razão que Os Idiotas, o novo romance de Rui Ângelo Araújo, acaba por ser provocador. É por essa mesma razão que já mexe e chama a atenção antes de ser publicado. O que será, afinal, um idiota? Onde estará a ponte que separa os idiotas sonhadores, dos corruptos que vemos todos os dias nos telejornais? Os ingénuos, dos presidentes de Câmara dinossauros que todos conhecemos? A provocação torna-se ainda maior quando todas estas ambivalências se juntam numa só sátira social, o que significa que nenhuma das interpretações que se tenha de um idiota esteja totalmente errada ou correcta. Porque queria levantar um pouco o véu a este romance, decidi ter uma pequena conversa com Rui Ângelo Araújo. Falou-se não só de Idiotas mas, também, dos tempos da Periférica, a revista cultural de Vilarelho de Jales, concelho de Vila Pouca de Aguiar, da qual fez parte. A conversa não parou por aí e falou-se, ainda, do estado actual dos suplementos culturais e como se vive a cultura em tempos de crise. Para já, apenas uma certeza, “O quer que sejamos somos por oposição aos cretinos que nos rodeiam.”
Vamos começar pelo título do livro, Os Idiotas. Nos tempos que correm é, sim, um título sugestivo e provocatório. Mas a pergunta impõe-se para quem esteja a ler esta entrevista. Quem são afinal os idiotas? Melhor, o que é o um idiota?
Ora bem, os Idiotas são as personagens do livro que eu escrevi. A frase da contracapa, “o quer que sejamos somos por oposição aos cretinos que nos rodeiam”, acaba levantar um pouco o véu. Não quero, no entanto, estar a defini-los. É preciso que as pessoas leiam o livro para perceber quem são. Não é uma ofensa particular a ninguém mas é, como diz muito bem, uma provocação.
É uma provocação social.
Sim. Acaba por ser uma provocação social, política, e atravessa todos os aspectos da essência das pessoas e dos poderes.
Há uma passagem interessante e actualíssima que encontrei: “Outra maneira de ver as coisas é pela lente da psicanálise. Presidentes da Câmara não passam de gente insegura, permanentemente necessitada de se pôr em bicos dos pés para mostrar que existe, está viva. Eu consigo imaginá-los a olharem para o espelho, à noite , em perene indignação hamletiana, olhar melancólico, coração apertado com a dúvida, unhaca roída, hesitantes quanto à forma de se mostrarem dignos. Hesitantes quanto à forma, às múltiplas formas, de se mostrarem tout court”.
Também é provocatório nesse sentido. A escolha da altura para o publicar tem a ver com as eleições, uma vez que uma parte do livro retrata os vários clichês do nosso relacionamento, enquanto os cidadãos, com o poder autárquico. Trata-se de uma sátira, uma comédia, com uma crítica implícita, naturalmente. Não pretende, mesmo assim, retratar ninguém em particular. Pretende, sim, retratar a nossa relação com os poderes autárquicos que, por sua vez, são simbólicos de qualquer poder político do país. A história engloba um presidente de câmara, mas acaba por ser um símbolo, tal como as outras personagens. Tratam-se de personagens tipo, protótipos dos cidadãos e, como tal, são simbólicos da sua classe. Essa é apenas uma parte do livro. Não é um manifesto ou um panfleto político, não. Os meus idiotas são idiotas porque têm sonhos, ambições, desejos e interesses. No fundo são ingénuos. Têm aspirações para a sociedade, para o seu dia-a-dia, difíceis de alcançar e, portanto, são idiotas afectuosos. É mais no sentido que idiota que eu fui e não no sentido que idiota que aquele tipo é. Mas isso deixamos para os leitores verem. Toda a confusão que possa haver entre idiotas e eleições autárquicas é marketing.
Mas esta altura já foi premeditada, certo? Foi o que disse no início da entrevista.
Sim, pelo livro conter uma sátira social que se relaciona com as eleições, com o exercício da democracia, diria mais assim. As eleições são os momentos altos da democracia.
Mas a passagem acima descrita não deixa de dar um retrato bastante curioso dos nossos presidentes de câmara.
Isso é marketing da editora. Aproveitar certas passagens que parecem oportunas nesta altura. É também sobre pessoas. Sendo uma sátira há, naturalmente, uma crítica implícita a muitas coisas. Não diria uma crítica, diria uma exposição, uma figuração da vida, do país, dessas personagens. Não sendo, necessariamente, Portugal, atenção. Mas é um romance com atribulações, equívocos próprios das pessoas no campo dos afectos, da própria memória. A nossa relação com a nossa memória de infância e adolescência. Os equívocos que alimentamos durante anos, sem nos apercebermos, em relação à nossa própria história ou à história das pessoas que conhecemos. O livro é isso, sobretudo, com a circunstância de ser também um retrato de alguns aspectos da vida nacional.
Apesar de ser uma sátira divertida, o seu livro poder-se-ia considerar uma distopia social?
Ou a vida já é uma distopia social (risos). Se faz uma caricatura ou um retrato fiel, acho que os leitores é que deverão ajuizar isso. Mas é, de facto, uma distopia no sentido em que o livro é influenciado pelo tempo em que vivemos. A verdade é que, face ao que era a nossa vida há 10 ou 20 anos atrás, caminhamos a passos largos para uma distopia. Todas não direi, mas grande parte das nossas conquistas sociais, que demoraram décadas a serem conquistadas, estão agora em risco. Tanto no domínio da segurança, conforto e bem estar, como no domínio dos direitos humanos. A distopia talvez esteja instalada na vida real e, nesse sentido, o livro é menos uma caricatura do que um retrato.
Recuando, agora, até aos tempos Periférica. É difícil, actualmente, conceder a uma publicação toda a atenção de que necessita? Já para não falar das dificuldades financeiras e da possível escassez de recursos.
A dificuldade, nesse aspecto, não é maior agora do que era há seis ou sete anos atrás, quando acabámos a Periférica. Há mais facilidades no que diz respeito à evolução das tecnologias da comunicação. As ferramentas que temos hoje ao nosso dispor são bem mais evoluídas do que na altura. Nesse aspecto, o nosso trabalho até acabaria por ser facilitado. Agora, uma revista desse género, que tenha intenções comerciais, (quando digo comerciais significa que possam sobreviver financeiramente com a venda de exemplares), tem, naturalmente, enormes dificuldades. Mas a Periférica nunca foi uma revista que tivesse intenções de pagar aos seus colaboradores. As únicas despesas prendiam-se com a impressão e com a distribuição, cobertas, maioritariamente, através das vendas da revista e publicidade. Se houvesse necessidade de algum financiamento extra, esse provinha do Grupo Desportivo e Cultural de Vilarelho que assegurava essa cobertura. Se a revista fosse feita nos mesmos moldes, com as pessoas a quererem colaborar de forma gratuita, ainda podia existir. Se fosse para pagar vencimentos a quem trabalhasse, claro que não seria fácil, até porque os próprios jornais, hoje em dia, estão a atravessar grandes dificuldades financeiras. Até os mais comerciais, como o Jornal de Notícias ou o Correio da Manhã, que se esforçam imenso para serem populares, não estão a viver um período fácil. Tivemos de acabar com a Periférica porque não tínhamos tempo pessoal. Era necessário trabalhar para viver, para comer, e estávamos numa fase de grande dedicação a outros projectos pessoais que exigiam a nossa atenção. Isso interferia com a nossa capacidade em fazer uma revista bem feita. Desde o início, tínhamos a certeza de que a revista acabaria no dia em que percebêssemos que podia começar a correr mal. No dia em que começasse a perder qualidade. Creio que o fizemos em bom tempo porque era provável que isso acontecesse, tanto pela falta de tempo, (a razão principal), como pelo estatuto que já tínhamos alcançado. Levou-nos ao limite das nossas capacidades para conseguir manter o nível. Decidimos, portanto, acabar em boa altura. Hoje, revistas como essa fazem falta. Fico bastante agradado por ver surgir o magazine IP4 na internet. Estou muito contente por esse projecto. Aliás, acalentei a esperança de que houvesse uma nova geração que pegasse na ideia da Periférica para poder conduzi-la a outro estádio, para outra coisa diferente mas com os mesmos pressupostos. Porque, de facto, faz muita falta projectos de cidadania activa que estejam atentos e críticos à sociedade que os envolve.
Pretende enveredar por um projecto semelhante no futuro?
Esses projectos são colectivos também, não são unipessoais. A equipa que fazia a Periférica na altura, mantém o contacto mas não tem a mesma liberdade de tempo, a mesma capacidade de entrega. Não digo que no futuro não possa haver novos projectos nessa área. Nos últimos anos tenho vindo a dedicar-me à literatura de ficção, ao romance; mantemos um blog em conjunto, que é a continuação do blog da Periférica, mas não digo que no futuro não possa haver outros projectos. Honestamente, não posso dizer que sim nem que não. Não faço ideia.
Como é que olha para os suplementos culturais de agora? Tinha de lhe fazer esta pergunta.
Olhe, com pena! Com uma certa tristeza por ver o espaço cada vez menor que se dedica à literatura, o que sempre me interessou mais. Mas falo da literatura em geral: não só a ficção, mas também o ensaio, a história, a ciência política. Fico triste embora compreenda as razões. É muito difícil sustentar os suplementos culturas porque, também, os hábitos de leitura do país são escassos. O número de pessoas interessadas em assuntos culturais sérios é reduzido. Não há margem para ler, embora haja mais pessoas a ler actualmente, mas não suplementos culturais de qualidade. Sem o investimento das pessoas, no dia a dia, a comprarem jornais, não se vai conseguir recuperar aquilo que eram os suplementos culturais de há 10 atrás: o Mil Folhas, por exemplo, ou até a própria Actual, do Expresso, que tinha outra dimensão no passado. Os jornais diários tinham sempre uma secção de livros, todos os dias. Agora, reduzem-se aos fins-de-semana e, mesmo assim, não abundam. É um panorama tristre mas está nas mãos da sociedade mudá-lo, não está nas mãos de uns quantos iluminados. Se o povo não achar que tem algo a fazer nesse sentido, a mudança nunca acontecerá.
A crise pode gerar mais idiotia? No sentido em que pessoas podem relativizar a importância da cultura na formação do carácter.
Não me parece que a crise transforme as pessoas em idiotas maiores, se é que já o eram. Em relação à cultura, o que acontece é que há menos dinheiro para ir a espectáculos, comprar livros, discos e ir ao cinema. Há uma afastamento por falta de dinheiro, não por falta de aptência das pessoas. O que acontece é que havendo menos dinheiro, há também um desinvestimento do estado, das instituições responsáveis e da própria imprensa, no que diz respeito à divulgação e ao sublinhar da importância de nos mantermos activos culturalmente. Isso, nos dias que correm, pode levar a que certas pessoas fiquem mais esquecidas, menos activas nesse campo. Mas a principal razão do afastamento das pessoas em relação à cultura é a falta de dinheiro, não é outra coisa.
[…] Três ilustrações para uma entrevista ao escritor Rui Ângelo Araújo, realizada pela Ana Fernandes para o IP4. As ilustrações abordam três temas principais que denotei na leitura desta entrevista, respectivamente: pessoas, poder e imprensa. A entrevista pode ser lida aqui. […]