Exercitando os esternocleidomastóideos: um concerto no Club de Vila Real

64840_553087354738861_1851444048_n

(imagem via facebook oficial Dreamweapon)

Se um tipo entra com boas intenções numa sala onde supostamente decorre um concerto e a primeira coisa que vê é Gaspar o Fantasminha, talvez lhe apeteça logo recuar nos seus passos e perguntar ao barman que raio lhe pôs na bebida. E se o Gaspar de seguida se transforma na Moby Dick, um gajo prepara-se para pedir o dinheiro de volta. Mas depois os olhos habituam-se à penumbra, descem pela parede e descobrem que há músicos debaixo do que parecia ectoplasma e é na verdade uma espécie de vídeo show. Seguindo o cone de luz até à origem percebe-se que há uma menina a manipular um projector de slides. E com a recuperação dos sentidos vem a notícia de que há música a soar, ou algo próximo disso.

A sala tem bancos corridos em três paredes e no meio do U há mesas e cadeiras. Na parede da esquerda, quatro raparigas manipulam desesperadamente iPhones como se fossem profetas dos últimos dias com trabalho em atraso. O som proveniente do palco propôs-se fornecer-lhes a banda sonora adequada, carregado de distorção e feedbacks. Estão no palco quatro tipos e um deles é o Ian Curtis, estranhamente agarrado ao baixo em vez de estar a ter um ataque epiléptico em frente ao microfone. Contudo, a aparente calma do esguio baixista — com a camisa apertada até ao pescoço, o cenho franzido, a cara imberbe, o cabelo curto e sem patilhas — é a mesma serenidade tensa do vocalista dos Joy Division antes de explodir em frémitos. Se eu estivesse no lugar dos gajos da primeira fila manteria um olho naquele baixo.

O resto da banda não lhe liga patavina. O guitarrista da direita está de cócoras a mexer nos pedais como se tivesse saltado o jantar e estivesse ali a continuar o soundcheck: tem o ar concentrado e o rego do cu à mostra de quem afina qualquer coisa. O da direita, com aspecto de contabilista honesto, mostra-se preocupado e irrequieto, hesitando repetidamente entre os botões da pedaleira e os do amplificador, a agarrar com a outra mão a guitarra pelo pescoço como se tivesse apanhado um ganso no quintal. O baterista não parece menos Ian Curtis do que o para já catatónico baixista, mas vê-se bem que ainda não tem idade para estar deprimido. Nem para estar no Club, aliás. (É um puto, for God’s sake!) A menina dos slides, se reparamos no que ela projecta, no carácter orgânico, celular, viscoso e metamorfoseante do que ela projecta, parece um Dr. Frankenstein ou um Dr. Moreau de rosto angélico brincando com as lamelas do microscópio.

É sábado à noite e estamos em Vila Real. Como a maioria das capitais de distrito, a cidade transmontana tem mais vida cultural do que os seus habitantes estão dispostos a reconhecer. Ou a seguir com atenção. (Já para não dizer frequentar.) O charmoso Club — antigo café da high society vila-realense, onde há cinquenta anos debutava a fina flor burguesa em bailes respeitáveis — tem tido nos últimos dois anos uma oferta de concertos que não deixa muito espaço para recuperar o fôlego. Se considerarmos que antes de ir ali as pessoas poderiam ter passado no teatro da terra para ver uma coreografia de Benvindo Fonseca para a Companhia de Dança de Almada, não podemos negar que se calhar até nem se vive nada mal em Vila Real.

Claro que as cidades portuguesas de província são por definição chorosas. A queixa mecânica é um ex-libris como um castelo ou uma catedral. Roteiro turístico que se preze tem de mencionar este traço etnográfico das cidades do interior. É tão garantido e castiço quanto a desgarrada no Minho ou o cante no Alentejo. Uma capital de distrito pode queixar-se (como Évora), de não ter cinema e, em simultâneo, ter quase vazio um belo auditório com um cartaz assíduo e ecléctico, sem margem para desculpas. Ou pode presumidamente, dando-se ares, suspirar por um espaço como Hot Club, ignorando que ali não é a área, aliás exígua, o que verdadeiramente conta.

A lusitanidade é uma herança que não se sacode facilmente — agarra-se às golas como a caspa. E a caspa acumula-se nos ombros, se tudo o que fazemos num concerto é abanar a cabeça. No meio do U do Club de Vila Real, ladeada pelas harpias do iPhone e pelas experiências de Miss Moreau, há uma pequena multidão viva do pescoço para cima, reagindo com o busto à música que os Dream Weapon de súbito tornam mais inteligível. O psicadelismo da banda, mesmo nos momentos em que os músicos parecem autistas capazes de ignorar tudo e todos e ligar apenas ao seu próprio instrumento e acessória parafernália electrónica, seria de molde a provocar um pequeno tremor de terra se a audiência fosse constituída por ingleses ou espanhóis. O repórter teria dificuldade em segurar o copo no joelho, como faz, se este não fosse um clube tuga. Mas também teria perdido a beleza ritmada e coreográfica, tipo natação sincronizada, de trinta cabeças acenando na pulsação da música. Há momentos de rito religioso judaico (quando as cabeças acenam coordenadamente) ou de vagas tumultuosas (quando rodopiam sem ordem); há a ola ou a impressão de searas ondulando. Abaixo do pescoço, há bons e velhos cus lusitanos solidamente pousados em pequenas cadeiras de café antigo.

Chegámos ao final e ouve-se agora o melhor tema, com uma excelente batida e uma intervenção do vocalista que, dada a dificuldade que ele tem de se fazer ouvir sobre as guitarras, apenas podemos suspeitar, sem contudo duvidar, que é melodiosa e arrebatadora. Poucos povos resistiriam com tanta facilidade, sem ir dançar e entrar em êxtase físico, a esta última música da banda. Mas também poucos povos têm tão exercitados os esternocleidomastóideos. E, nos casos mais estóicos (como o do repórter), as pálpebras. Let’s rock!

Comentários

  1. João Rebelo diz:

    É interessante como a percepção de uma noite no club facilmente descura o paralelismo que existe neste espaço entre: um lugar bonito e interessante com alguma oferta de qualidade mas com pouco critério Vs Um esquema disfarçado de associação para ludibriar o sistema à custa de falsos “sócios” e exploração de empregados, para desta forma fugir aos impostos e enriquecer de forma ilícita. Talvez seja pelo ambiente perfumado. No final de contas vale tudo por um local onde se pode tomar um copo, descansado, que até tem uns concertos.