Isto não é uma vindima

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A minha aldeia sabe-me a água. É tão simples quanto isto. E quando me afasto, tanto por vontade própria como por imposição ou simples devaneio, da história que assistiu ao meu nascimento, é essa mesma água do Tua que chama por mim e me aninha. Quando penso em raízes, não me vem à mente a imagem de terra, uma árvore em específico ou uma planta que tal como uma torga se arreiga ao seu chão e no seu chão há-de ficar. Elas permanecem no caudal que corre, se transforma e se renova para, no final do percurso, voltar ao mesmo início com o que aprendeu nas suas passagens. As minhas raízes não são feitas de terra. Elas são feitas de água. A mesma água que me viu brincar, no passado, num rio que corre ao pé de minha casa e ao som do qual acordei nas manhãs de Verão, como nos banhos de mangueira dados pela minha avó que me faziam pensar que era o Mogli no feminino. Uma espécie de Huckleberry Finn que se espalha na vastidão e se desvanece nas fronteiras delimitadas. Para mim, portanto, antes da terra vem a água. Idiossincrasias de quem vê o rio correr e tem como banda sonora de brincadeiras o som da sua corrente. “Corrente”, “correr”, o movimento constante, aquele que anda, aquele que se desloca e volta. Assim é o rio, assim é o molhado que me ensopa por dentro e enlameia as minhas sapatilhas. Envoltas num misto de terra e orvalho que compõe o solo que agora piso, ou seja, completamente sujas pela lama, vão sulcado o terreno até fazerem crer aos meus pés que pisam um rio. Mas não. Ainda é Setembro, o mês dos inícios. As uvas cresceram e estão à espera de serem cortadas para se metamorfosearem em vinho. Aqui estou, portanto, na minha vinha, com uma tesoura própria na mão, a cumprir-lhes a vontade e a pisar esta terra cheia de água orvalhada uma vez mais. Se a água sem terra (chão) se afunda em si mesma, a terra (chão) sem água torna-se seca e estéril. É complementarmo-nos com o que nos falta. 

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Há menos uvas este ano, infelizmente. As consequências directas traduzem-se em menos litros de vinho para se beber e para se vender. Segundo os que comigo trabalham já desde as sete e meia da manhã, este decréscimo é geral e estende-se a todas as vinhas da minha zona. Exceptuando algumas boas videiras em que o fruto é proeminente, os cachos de uva, na sua generalidade, traduzem-se em pequenos baguitos sem muitas promessas. Alguns fazem lembrar passas, outros estão maduros demais e começam a apodrecer, os restantes estão já podres por inteiro. O meu pai não se cansa de repetir, “cuidado com as uvas podres, isso não faz bem nenhum. Não cortem, por favor, as uvas podres”. É pena não se poder aproveitar alguns desses cachos. Vejo que deviam ter sido formidáveis e não deixo de pensar que estiveram no ponto certo para serem colhidos mas, este ano, pode-se dizer que começámos tarde. Não pôde ser de outra forma. Começar uma vindima implica disponibilidade, (tanto de tempo como de dinheiro), averiguar quem pode e quem se disponibiliza para ir, o que levanta outra questão: o agendamento das vindimas de forma a que amigos se possam ajudar uns aos outros. “Aqui já não há quem ganhe a jeira”, diz-me a minha avó ainda antes de começarmos. Há menos jovens disponíveis, sim, como também menos carteiras capazes de lhes pagar. Isto faz com que este implícito sistema de entreajuda seja, não obstante o aumento do trabalho, um escape mais saudável.“Tinha três vindimas para este sábado mas tive de desmarcar. Sou só um e para ano vou ajudar menos gente. Estou cansado.” Diz-me um amigo do meu pai que, devido a semelhanças físicas óbvias, me faz o lembrar o ‘Bambino’, interpretado pelo Bud Spencer, do Chiamavano Trinitá. É esse o nome com que eu o trato. Como desforra está sempre a gozar com o timbre da minha voz, fino, calmo e arrastado, e trata-me pelo nome da minha avó no diminutivo por que me acha parecida com ela. Mas uma das vantagens de se ter um Bud Spencer como ajudante é carregar-nos ao colo quando os pés começam a falhar naquele terreno irregular. São apenas uns míseros segundos mas ajudam a aliviar daquele chão. Brincadeiras que no fundo dão jeito e se agradecem.

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Ao cansaço físico que faz o corpo ressentir-se e retinir por todos os lados, junta-se ainda o sono de se ter acordado tão cedo. As costas doem, é como se a coluna embatesse contra uma grande parede. Ou então, se preferirem, é como se transportássemos o peso do mundo. Não me importo de ter os pés molhados mas parece que com a dor se comprimem e diminuem, já para não falar do facto de sentir que estão prestes a partir-se ao meio com a mesma facilidade com que se divide um pedaço de pão. O meu irmão mais novo costuma dizer sempre ‘já chega’ após os primeiros cachos caírem no balde e deixamo-lo ir para casa. Este ano, porém, de forma corajosa permanece connosco. Com o seu pequeno recipiente na mão, vai aqui e além recolhendo as suas uvas e não se cansa de estar ao pé de nós. No final não paramos de lhe dar os parabéns e, num radioso sorriso, mostra-nos que sente a felicidade ou a ‘dor’ do dever cumprido dos rapazes crescidos. O sol esconde-se e as nuvens, carregadas, cuscam a aldeia a partir do céu longínquo. Sente-se uma ténue mas revigorante aragem que, não obstante o corpo dorido e a cor cinzenta do dia, torna-se mais convidativa para o trabalho do que o calor. Este ano acaba-se cedo, ainda não é bem meio-dia. Esperamos que o meu pai e os meus irmãos mais velhos acabem de organizar as tinas, colocá-las na carrinha, para irmos todos para casa. Enquanto se espera, as conversas com o nosso Bud Spencer vão dar sempre ao mesmo — política. As frases são meros soundbites que quase todos são capazes de repetir, como se estivessem escritas num almanaque com este título, ‘frases políticas para o povo dizer e redizer’. O que me diverte imenso e me faz rir é a forma como a sua verve ressalta quando as diz. Independentemente do ‘rosário/breviário’, há um fundo de verdade na sua convicção. É, digamos, o único com resquícios de uma alma revolucionária que não se cala. Por estes lados é algo que não se pode desperdiçar e por isso me divirto com ele. “O que é que a menina andou a fazer na Alemanha que não pôs a Merkel no lugar?”. Pergunta a uma prima minha que nasceu no mesmo país dessa cujo o nome me custa imenso escrever uma segunda vez. “E a culpa é deles? Ai é só comprar sem se trabalhar. Está bem!!!” Responde. Pois bem, já cansada não digo nada. Penso que é melhor cada um ficar no que lhe parece porque a minha verve foi-se. Mas o nosso Bud Spencer continua e fala da agricultura que foi praticamente destruída, quase como se pedissem de joelhos aos produtores para pararem de produzir, e que está farto de andar para trás e para frente devido ao seu trabalho e às condições que lhe dão. Ganha cada vez menos e tem uma filha que emigrou, recentemente, para a Inglaterra. Acabou o curso, quis sair de Portugal, e já se empregou em terras de Sua Majestade. Para o ano diz que não quer saber, vai pedir a reforma. O corpo já não aguenta e quer descanso. Cansados e sem me apetecer falar muito, partimos da vinha.

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Ao chegar a casa a minha mãe e mais uma familiar que me viu praticamente crescer encontram-se a assar a carne entremeada para o almoço. Não a via há muito. Divida entre o querer vê-la de novo e a vontade de fugir a uma pergunta tal como o Diabo foge da cruz, cumprimento-a com um sorriso.

Vens cansada, Ana ? Sim, venho. Olha que o trabalho dá saúde. Pode dar, mas não às minhas costas. Ai, se fosse antigamente. Eu já nem falo aos meus netos disso porque agora é ‘boquinha que queres coração que desejas’. Não sabeis o que custa a vida.” Quando alguém me diz isto fico, curiosamente, indecisa com o que responder. Como fazer compreender a alguém que trabalhou em demasia a exasperação que pode ser a perda, a espera e o cansaço de um constante diletantismo amador imposto? Ou a perda de capacidades? O que é, face ao que ouvimos constantemente hoje em dia, perder ou ganhar capacidades? E o gosto por essas capacidades? Sinceramente não me abstenho de pôr tudo no mesmo plano e não sei o que pode doer mais. O corpo que se materializa em dor física porque se vergou para apanhar aquela uva ou azeitona, ou o cansaço interior em se continuar a ir, constantemente, para onde nós queremos mas onde não cabemos. Já agora! O que é que isso vale hoje em dia? É um pouco esquizofrénico, sim. Percorro, mentalmente, o meu próprio rosário de frases decoradas ao qual dei o nome, ‘as penas em se gostar do trabalho que se faz’, e não encontro resposta. Talvez seja isso, ‘boquinha que queres, coração que desejas’. “Ora diga lá isso outra vez?”, “Então não conheces Ana? É boquinha que queres coração que desejas.”

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A polifonia instala-se ao almoço e fala-se de tudo e mais alguma coisa. A linha orientadora começa por ser o telejornal que, entretanto, começa. Fala-se das primárias do PS, de treinadores de futebol, das partidas dos respectivos clubes até se chegar, sem já me lembrar como, ao código da estrada e à melhor maneira de esterilizar frascos de doce caseiro. Há bocas que, embora cansadas, continuam a falar e bebem alegremente, há outras tristes que não podem devido a problemas de saúde e calam-se. A pergunta à qual fujo tal qual o diabo foge da cruz chega finalmente. “Então Ana, conta-me cá, como é que isso vai?”

A tarde chega cinzenta, a brindar-nos com chuva e trovões. As uvas vão para ‘esmagadeira’ e entram já trituradas para o pequeno lagar que tenho em casa. Houve, de facto, menos uvas, mas afinal a diferença não foi assim tão grande relativamente ao ano passado. A minha mãe faz jeropiga, para quem não sabe, a mistura da água-ardente com vinho-mosto, e tudo vai bem e calmo. Mais uma vez a minha avó, indignada, fala-me das doenças imaginárias da vizinha e do seu gosto especial em ligar para pedir favores. A conta astronómica que deve ir por ali. E então as viagens que já fez através do INEM? Goza-se até, que se aquela vizinha for para o céu, há-de ser um repleto de ambulâncias, hospitais e comprimidos. E então aquele filho, o único que tem por companhia, que já não quer saber e estoura tudo na bebida? Um escândalo, uma vergonha, uma infâmia. Onde já se viu um idoso sentir-se assim tão só e clamar ferozmente por atenção? E que não há meio dos outros filhos a porem no lar. Que maçada. Estranhamente, os cães daquela casa não se vêem neste momento. Azar, porque gosto daqueles cães.

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Entre os chuviscos, reparo pela primeira vez que todos os vizinhos se encontram, também, em vindima. Por escassos minutos, entre o cinzento do céu, o bairro até fica bonito com tratores e homens que vão correndo daqui e para ali levando tinas e sacos com uvas. O vinho repousa já no lagar a aguardar que o cango levante. O meu pai põe-lhe um pesa-mosto e prevê que terá, talvez, 12 graus. Não o pisamos devidamente. Será no dia seguinte que o meu pai entrará ao vinho com mais cuidado.

Sim, o dia está aguado e o rio continua a correr. Como o rio corre, nós andaremos lentamente num terreno sulcado de uma vinha. O rio vai parar a um destino, o nosso será apanhar aquelas uvas para fazer o vinho. O rio retornará eternamente ao início para podermos sempre ouvi-lo e senti-lo, as uvas crescerão outra vez, sem permissão, em maior ou menor quantidade, esteja a vinha mais ou menos bem tratada. Crescerão independentemente da nossa dor, do nosso cansaço, das nossas paranóias, doenças, falhanços ou alegrias. Se assim é, então porquê? Não sei, talvez porque sim. Uma vez que já não acredito romanticamente em nada, acredito no ‘porque sim’ e é bom. É o que fica para além de tudo. Tal como o Ega diria, uma vez que ultimamente se fala tanto dos Maias, “nem para o amor, nem para a glória, nem para o dinheiro, nem para o poder.” E dessa forma, porque sim, gosto deste lugar com esta gente que vai oscilando entre perfeições e imperfeições com as quais me vou identificando ou nem por isso. Também me acontece o mesmo e assim encontro as minhas verdadeiras raízes. Posso ser esta aldeia como nada do que representa, mas gosto de vir aqui beber a água e a terra. Se a água sem terra (chão) se afunda em si mesma, a terra (chão) sem água torna-se seca e estéril. É complementarmo-nos com o que nos falta. É correr e voltar. Cansados ou com corpo dorido não importa. Todos temos a nossa quota parte de cansaço e tudo voltará a crescer outra vez. Ah, para terminar, ninguém se embebedou este ano. A coisa mais caricata que aconteceu, foi a visita de um convidado de um vizinho nosso que se abraçou à minha avó para aí umas cinco vezes. Era chatinho e não se cansava de dizer o quanto admirava os velhinhos, o quanto tinha pena deles. “Aparece-me cada um à frente, nunca o vi mais gordo”, disse a minha avó quando o seu recente amigo se foi embora.