Jogo do Pau, a nobre tradição

Depois da morte do King Eusébio e da verborreia mental do jotinha Hugo Soares, o assunto quente entope-grelhas-televisivas-entope-redes-sociais do momento (ou pelo menos quando comecei a escrever este artigo) é a lamentável tragédia ocorrida na praia do Meco que vitimou seis estudantes da Lusófona. Ora, quando há uns dias atrás Manuel Damásio falou à Sic sobre o assunto — numa entrevista que só por si define todo conceito da expressão “não sei se ria não sei se chore” e que nos faz duvidar do estado de sobriedade do presidente do Conselho de Administração da universidade que deu 32 equivalências ao gangster Miguel Relv…ahhhhbom — uma tradição secular deste nosso país foi, por instantes, chamada à baila. Não, não estou a falar da praxe, nem vou escrever uma linha sequer sobre isso — na verdade preferia ter de copiar à mão, e em escrita invertida, um compêndio de mecânica geral enquanto me batiam repetidamente com um objecto rombo nas orelhas, a ter que dissertar sobre a praxe — falo sim do mítico e quase olvidado Jogo do Pau, que Manuel Damásio usou (juntamente com o berlinde) como termo de comparação para a brincadeirinha de gaiatos que levou seis famílias a ter que se despedir demasiado cedo dos seus entes queridos. Esperemos só que a verdade venha à tona, e esta será o primeiro e último trocadilho de gosto duvidoso acerca do assunto.

Ora o Jogo do Pau para quem não conhece, e de uma forma muito redutora e corriqueira, é a arte de arrear no lombo com um cajado. Apesar do nome propício a trocadilhos imaturos que vamos ignorar porque já somos todos gente crescidinha, é uma arte marcial tão legítima que até vilões do universo Batman a praticam mas lamentavelmente desconhecida de uma grande franja da população jovem. Há quem lhe chame também a “esgrima lusitana”, e o facto de a nossa esgrima usar paus em vez de aço diz muito sobre este país cronicamente falido desde que reis com prioridades trocadas estouraram o ouro pilhado no Brasil em mobília panasca e colchas de cama.

Sim, estou a olhar para ti D. João V, Mafra não te safa.

Sim, estou a olhar para ti D. João V, Mafra não te safa.

Acredita-se que terá surgido nas regiões minhotas e que daí se deslocou para Trás-os-Montes (um pouco como eu que vivo em Vila Real mas fui criado numa cidade do Minho cujo monumento principal, já agora, é a estátua de um tipo em mangas de camisa à bordoada num finório, e — consequência directa ou não — é casa de grandes mestres do Jogo, o que só por si me dá extra crédito para vos falar do assunto) onde gozou de grande popularidade, resultado da necessidade de defesa por parte de pastores, condutores de gado, peregrinos e bom, quem mais andasse com um cajado à mão. Como as técnicas e movimentos básicos se desenvolveram isso agora é que já não sei, mas não é difícil imaginar um cenário shaolinesco em que um jovem pastor mais energético e aborrecido pela solidão do seu trabalho aproveita um castanheiro próximo como saco-de-vergastada, e dia após dia desenvolve os seus skills (e aqui entraria uma montagem à filme dos 80’s) até se tornar um daqueles tipos misteriosos e cheios de carisma, que toda a gente respeita e teme após ter derrotado sozinho um gang de condutores de gado — ou um qualquer equivalente rural aos Hell’s Angels — numa rixa na feira, transmitindo depois os seus segredos à agradecida população para que numa eventual próxima vez se consigam defender sozinhos.

O jogo foi-se então desenvolvendo enquanto passava de geração em geração, acabando por se tornar parte integrante da cultura nortenha e recurso usual para situações as normais do dia-a-dia como o ocasional choque de egos inflamados por causa de uma morena roliça, ou a defesa da pátria em situação real de batalha — muito castelhano, mouro e francês sentiu no lombo a sua eficácia. Com o passar dos séculos o Jogo do Pau alastrou para sul, tomando conta do Ribatejo, onde é refinado e desenvolve uma escola alternativa, de preocupação mais exibicional. A determinado momento a arte do povo chega aos salões reais, sendo inclusive o Marquês de Pombal um talentoso entusiasta.
E se é verdade que até recentemente ainda se via nalgumas regiões do norte português os famosos “varredores”, o equivalente ao samurai andarilho que vagueia de cidade em cidade, de romaria em romaria, à procura de um bom combate, os novos tempos trouxeram novas mentalidades menos tolerantes a pancadaria e o avançar tecnológico acabou por tornar a vara numa arma um tanto ou nada obsoleta para fazer frente a, sei lá, balas. Lentamente, o Jogo trocou as ruas e campos de batalha pelos salões e ginásios.

Um ginásio, quando homens eram homens

Um ginásio, quando homens eram homens

Embora praticamente desconhecida por esta cambada de energúmenos a que chamamos jovens, enquanto modalidade o Jogo está hoje em dia totalmente organizado, federado e já consta como matéria alternativa do programa de educação física em várias escolas. E na sua estreia em competições internacionais de artes marciais (num não tão longínquo ano de 1986) a equipa portuguesa simplesmente correu à cacetada a concorrência, terminando gloriosamente invictos. Mas não me admira, dominando o Jogo do Pau qualquer barrigudo tasqueiro se torna um verdadeiro Jedi da lenha. Portanto jovem leitor com uma vendetta pessoal por cumprir ou simplesmente interessado em se aproximar um pouco mais das raízes da nossa nacionalidade via bordoada, procura o mestre mais próximo da tua região, quem sabe se não terás talento para a coisa e um dia destes possas tu mesmo, à força de pau-de-marmeleiro, arrancar aquele sorrisinho de filho-da-mãe da fronha do Relvas.