Ler ou não ler literatura, eis a questão

Este fim-de-semana discutiu-se no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, o estado da literatura em Portugal. A grande questão em cima da mesa era a seguinte: como pôr os portugueses a ler mais? Neste caso, não literatura leve e acrítica, como muito se faz actualmente, mas literatura que apele à nossa capacidade crítica, de pensamento. Os tais livros que ficam na cabeça eternamente, aqueles que nos transformam e viram o nosso mundo interior ao contrário, (sejam eles quais forem). A partir desta premissa, o debate tinha o intento de fazer a seguinte correlação: a partir do que se lê actualmente, quais as implicações para a democracia do amanhã?

Sou completamente avessa a legitimações e sacralizações, o que interessa aqui, portanto, não é discutir ou tentar normativizar as escolhas de quem tem por hábito ler. Se me disserem que gostam dos livros da Margarida Rebelo Pinto, estejam completamente à vontade, porque a verdade é que são livres para o fazer. Agora, se me disserem isso e eu suspeitar que há todo um universo literário que vos escapa e de que nunca ouviram falar, a questão é outra. Porquê? Porque uma coisa é escolher o que acaba por ser imposto pelas grandes editoras e pelo marketing apenas porque sim, apenas porque é rentável, outra é ter uma atitude crítica perante o que se escolhe. É isto o que eu peço, porque é isto que vos faz mais livres – terem conhecimento de causa. Percebido?

Ler ou não ler literatura, eis a questão

Livro de carne, Artur Barrio, 1978–79

Conhecimento é conhecimento e sim, costumo ser olhada de lado quando digo que os cursos universitários sejam eles quais forem, não devem obedecer à vontade das empresas. (Ah, mas essa é uma forma de combate ao desemprego, não sabias? Cresce!) Está bem, mas daqui a uns anos, quando um jornalista armado em chico esperto perguntar aos alunos de um liceu ou de uma universidade qualquer quem foi o autor do poema Autopsicografia e não souberem responder, tenham ao menos o decoro de não apontar o dedo. Fica sempre bem assumir o mea culpa da questão, não é verdade? Mas isso dava para uma outra discussão à parte, com muito suor, muito sangue e opiniões demasiado apaixonadas. Isso não implica que não se fale, no entanto, da forma incipiente como a literatura é tratada nas escolas. Por acaso, uma das tónicas no artigo que li no sábado, no Quociente de Inteligência, através do qual soube da iniciativa do CCB, foi precisamente essa: as consequências de vários autores serem constantemente retirados dos programas de português e a infantilização consequente dos alunos.

Estava eu muito bem à lareira, no dia de visita à minha aldeia, quando quis, propositadamente, tentar falar com a minha mãe sobre os autores que tinha dado no liceu. Pois bem, as minhas suspeitas confirmaram-se. Uma pessoa apenas com o décimo segundo ano, que seguiu ciências e não humanidades no secundário. Uma pessoa que, provavelmente, nunca mais pegou num livro após ter deixado de estudar, sabia mais de literatura portuguesa contemporânea do que eu quando frequentava o décimo segundo ano e, pasmem-se, em humanidades. É triste mas há que reconhecê-lo, o nome José Cardoso Pires não o ouvi pela boca da minha professora de português. Conheço-o graças ao Delfim que andava aos tombos lá por casa. Por isso mesmo digo isto. Se queremos a escola democrática, capaz de abarcar todas as pessoas provenientes das várias realidades sociais do nosso país, temos de entender o seguinte: não podemos estar à espera que todos encontrem o Delfim por acaso em casa, porque isso não vai acontecer. Há a internet, mas também não podemos esperar que o nome Vitorino Nemésio desça por obra e graça do Espirito Santo à cabeça de todos para ser pesquisado no Google. Fala-se tanto da apatia cultural das pessoas, que não lêem, que não querem saber. A comunicação social gosta tanto de ir para a porta das universidades mostrar a suposta ignorância dos estudantes, e é tão fixe apontar o dedo para se dizer que a única coisa que temos na cabeça é sexo e álcool, que nos abstemos de perguntar o porquê. Claro que há várias formas de pesquisa ao nosso dispor. Nunca estivemos expostos a um rol tão grande de informação. A questão é esta. Perante o oceano pacífico que se nos depara à nossa frente, será que é através da escola que os alunos adquirem uma capacidade crítica para não se perderem nesse mesmo oceano? Não, não e não. Há falta de tempo, as turmas são cada vez mais extensas, os programas são dados a correr e a preocupação com os exames nacionais é tamanha que, por muito que os professores queiram, muitas vezes não sabem inculcar nos alunos o gosto do saber, apenas pelo gosto do saber. Estão com os cabelos demasiado em pé para o fazerem. Não há tempo para se dar aos alunos uma abrangência contemporânea da área de estudo em questão ou, então, muni-los das ferramentas básicas para pensarem por eles próprios.

Cada vez mais o estudo transformou-se numa esquematização para se reter, apenas, o que pode servir para um determinado teste ou exame. A matéria que, provavelmente, não sairá num exame nacional não será levada em conta sequer. Ao contrário do que seria esperado, ao invés da abrangência do saber, são oferecidas umas palas para o saber. E já nem me apetece falar da quantidade de trabalho que, por vezes, um aluno tem: isto porque se confunde amiúde quantidade com qualidade. Fazer-se um trabalho à pressa não vai ajudar em nada porque, escusam-se de preocupar, não vai haver tempo para reter a informação que se escreve e estudar, convenientemente, a biografia necessária. Depois há, também, aqueles óptimos livrinhos com os resumos dos livros que ajudam imenso e são óptimos atalhos. Pode-se tirar uma boa nota mas se perguntarmos a esse mesmo aluno algo que não esteja nesse mesmo livrinho, não vai saber responder.

Há uma cultura da simplificação das coisas que irrita. Quanto ao Eça de Queirós, dei a Relíquia no meu décimo segundo ano porque a minha professora não tinha tempo para dar os Maias: o critério não foi a qualidade, o que é discutível, mas a falta de tempo. Só sei quem é o Carlos da Maia porque roubei, literalmente, o livro ao meu irmão mais velho: o que me valeu um puxão de orelhas por ter entrado no quarto e ter tido a lata de levar coisas sem permissão.

A nível de autores internacionais, o único que dei na escola foi George Orwell, no nono ano, e a minha professora teve o conselho executivo à perna porque não fazia parte do programa. Quando finalmente abri os olhos e comecei a interessar-me, de forma mais genuína, por literatura, dei-me de rompante com inúmeros nomes de relevo cujo o nome não conhecia. Teria desejado sabê-los mais cedo, e quando digo isto penso em Herberto Helder, por exemplo. Mas não houve tempo. Havia os trabalhos, os exames, os testes e havia que se cumprir o programa a tempo, com a referência aos mesmos autores de sempre.

As ferramentas de pesquisa ao nosso dispor são primordiais e de uma ajuda enorme para quem realmente quer chegar a novas coisas. O que não quer dizer que seja dispensável uma linha orientadora, como a escola deve continuar a ser e, mais do que tudo, continuar a desenvolver-se uma certa habituação às coisas. Não se pode pedir a alguém que conheça grandes realizadores quando, na televisão, só vê blockbusters e na escola nem se fala de cinema. Tal como não se pode pedir a alguém que conheça um determinado escritor, marcante numa determinada época, quando não é focado. Se não o conhecer não o pode pesquisar.

Quando tudo é feito e gerido em prol de um resultado imediato, à mercê do que é rentável, claro que o ensino da literatura e o ensino em geral se ressentem. Claro que o jornalismo, com as suas responsabilidades óbvias, também fica muito aquém do que seria desejável. Mais do que isso, quando o pensamento e a nossa capacidade crítica estão em risco, claro que a democracia do futuro também. O ensino das humanidades, tanto em Portugal como na Europa, já há muito que tem caído em declínio. Lembro-me de ter lido artigos sobre isso mesmo já de há três ou quatro anos. Isto constitui um grande entrave se, realmente, queremos cidadãos capazes de correlacionar várias áreas distintas como história, filosofia até, ou português. Um bom livro mistura todas estas áreas e bons hábitos de leitura devem ser fomentados, desde cedo, a partir da escola. A boa capacidade de interpretação não serve apenas para Português, mas também para Ciências, Matemática e afins.

Já estou farta que se diga que os alunos dão mais erros e têm um vocabulário mais simplificado sem se chegar à matriz da questão. Principalmente quando se fala, cada vez mais, da instrumentalização das várias áreas de ensino em prol de um ideal técnico ou empreendedor. Claro que isso se vai reflectir mais tarde no modo como vamos percepcionar a cultura e no papel que deverá desempenhar na nossa sociedade. Esta questão merecia um debate mais aceso na esfera pública, debate esse que ainda muito apagado. Miguéis Gonçalves do ensino e do marketing editorial, por favor, vejam o que estão a fazer. O regresso da literatura e falar-se de literatura é essencial para a formação dos cidadãos de qualquer país.