Mapping #1 | Pequeno livro vermelho

Num alfarrabista de Lisboa encontrei um objecto desafiante. Um livro de capa verde, grosso, com o título China Yearbook 1964–65. É um anuário do Taiwan, país em conflito diplomático com a República Popular da China, sendo este último nome disputado e partilhado pelo dois e usado neste livro como uma espécie de desafio da China pequena à China grande. As páginas, finas e frágeis como as de uma Bíblia, apresentam um país soberano, próspero, um paraíso social e industrial, pronto para providenciar aos seu cidadão a felicidade que ambicionam, mas também preparado para se defender das ameaças externas. O livro está escrito em inglês e é ilustrado com imagens, por vezes a cores, gráficos, tabelas e um grande mapa desdobrável. O desafio deste objecto reside no facto de ser muito difícil, diria quase impossível, encontrar informação adicional sobre ele. Qualquer pesquisa online resulta em nada mais interessante do que alguém a vender uma cópia do mesmo no ebay. A própria embaixada do Taiwan, com a qual troquei emails, não me soube responder às simples questões que eu tinha. Qual era o objectivo oficial desta publicação (aparentemente, ainda hoje publicada, embora com um nome diferente — a “China” desapareceu), para quem era feito, quem o comprava, como e acima de tudo, o que era aquela China Publishing Company, referida como editora do livro? Não estamos habituados a ficar sem respostas nesta era do conhecimento expandido, quase ilimitado. Sinto que este livro, misterioso pela sua distância no tempo e no espaço, desconhecido para os arquivos de informação online, desperta um certo romantismo na procura infrutífera do seu significado. Foi certamente um livro produzido em massa, mas este isolamento com que hoje o confronto, torna-o numa espécie de talismã do passado. Tanto quanto sei (ou será tanto quanto quero saber?), tenho o único exemplar que existe e agarro-me a esta mentira.

Também único, embora produzido em massa, é o exemplar de Sobre a Ideia Zuche que o meu pai me ofereceu. Este é o livro de propaganda da ideologia promovida pelo falecido Kim Zong Il na Coreia do Norte. Sobre este livro é mais fácil encontrar informação, embora não directamente sobre ele, mas sobre um país cujo mistério reside precisamente numa mitologia mediatizada. Esta mediatização não nos aproxima do lugar, ela parece afastar-nos dele. Quanto mais sabemos, mais distantes estamos. O que torna este livro único é algo a que se pode chamar a sua história privada. Foi oferecido ao meu pai por um colega de faculdade, um jovem norte-coreano a estudar em Lisboa, “enviado” pelo governo do seu país. O livro, este exemplar em particular, cristaliza um cruzamento entre pessoas de culturas imensamente distante, mas que num raro acaso se cruzaram de forma praticamente irrepetível. Ter este livro nas mão aproxima-me também dessa realidade distante e mitológica que é a Coreia do Norte, mesmo que o faça num grau muito secundário.

Sobre a Ideia Zuche pode-nos remeter imediatamente para o pequeno livro vermelho da China maoísta, aqui visto na sua representação cinematográfica em La Chinoise de Jean-Luc Godard. Ambos são manuais de conduta ideológica ao serviço de ditaduras personalizadas em líderes carismáticos. É, no entanto, inegável que o pequeno livro vermelho de Mao teve um maior impacto cultural do que o seu equivalente norte-coreano. Nunca mais nenhum livro pode ser pequeno e vermelho sem que nos transportasse automaticamente para o ideário daquela China comunista.

bloco

Como este caderno que usei para tirar apontamentos e onde nasceu este texto. O pequeno livro vermelho está condenado a ser teatral quando tirado de um bolso de qualquer casaco. O seu lugar, pela cor e pelo tamanho, talvez nunca possa vir a ser totalmente “aqui e agora”.

Com mais um pequeno livro vermelho regresso ao alfarrabista lisboeta onde comecei. Volto também à Ásia, se é que de lá cheguei a sair, com uma pequena publicação do ou sobre o Japão. Se nos casos anteriores, do Taiwan e da Coreia, encontrávamos textos em inglês e português, agora lemos em Alemão. Ou pelo menos quem o souber fazer, grupo no qual não me incluo. E escolhendo não traduzir, pelo menos por enquanto, algumas das palavras que poderiam desbloquear este objecto, prefiro mantê-lo ilegível, estranho e distante. Ver apenas a mancha de texto e apreciar as pequenas ilustrações, deixá-lo estar longe e assim, paradoxalmente, apropriar-me mais dele, torná-lo mais único.