O Design e a Autarquia

O que deve ser a imagem de um município? Como é que o poder autárquico deve comunicar com a população? E quais são as responsabilidades desta voz pública? Estas e outras são questões fundamentais que, largamente, continuam por responder. E para chegarmos a uma resposta é urgente estruturar uma estratégia que, inevitavelmente, tem de reflectir sobre a problemática do design, de forma responsável, informada e consequente. É inaceitável que a imagem do município seja ainda tão precária e inconsistente.

Há uns meses atrás deu-se lugar a um concurso para a criação do logotipo da Rede de Bibliotecas da cidade de Vila Real. Lançado num âmbito escolar, permitia apenas a participação de alunos de ensino secundário de escolas do distrito. Isto marca um ponto totalmente vergonhoso e irresponsável da parte de quem tem o papel de não apenas servir, mas também dignificar as instituições públicas. O absoluto desrespeito pela função do design e dos designers devia, num contexto social e político são, levar a sérias repercussões para quem tem estas ideias — ainda para mais quando este alguém se insere numa suposta entidade de preservação e divulgação da cultura, como são as bibliotecas. Que estas instituições desempenhem o papel de exploração que tem vindo a ser denunciado neste país é ilustrativo da atitude geral para com o design. Além de restringir o concurso a um sector sem qualificação para dar uma resposta eficiente — o mesmo é dizer que anula qualquer tipo de validade da formação dos designers — a entidade em causa apresentou como pagamento do projecto vencedor um iPad. Ironicamente, os autores do projecto vencedor receberam o iPad, mas também a informação de que o seu logotipo não iria ser usado — possibilidade prevista no regulamento. Regulamento esse que afirma o seguinte: «Este concurso tem como objetivos promover a participação dos alunos das escolas secundárias de Vila Real, estimular a imaginação e a capacidade criativa e publicitar o potencial artístico dos discentes.» Será esta a única forma imaginável de promover a capacidade criativa e o potencial artístico? E o que acontece a outros valores, como a valorização do trabalho ou da formação específica dos trabalhadores? Se houvesse a necessidade de resolver qualquer outro tipo de problema — de engenharia, medicina, lei, seja o que for — também convocariam apenas alunos do secundário só para não terem de gastar dinheiro? Quereriam com isto passar a mensagem romântica de que todos podemos ser designers, só temos de querer muito?

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Sendo um caso mais que preocupante, vindo de quem vem, a verdade é que este concurso do logotipo para a rede de bibliotecas não surge como uma surpresa. A relação do Estado com o design é nula; a das autarquias é negativa, abaixo de zero e de cão. Num texto muito bom, de título “A Má Imagem”, José Bártolo expõe a podridão do design no sector público. Um dos pontos iniciais incide sobre a questão dos concursos pouco transparentes e dos seus resultados miseráveis. Mas se começarmos a olhar para o funcionamento do design das Câmara Municipais, e passamos aqui a tomar como referência a de Vila Real, logo percebemos que nestes casos até os concursos são miragens. No âmbito municipal, assim como no autárquico, a questão do design ainda nem sequer o é. Reflectindo um panorama que, salvo raríssimas excepções, é nacional, o completo desrespeito e desinteresse pelo acto comunicativo é também uma forma de incompetência estratégica, cultural e até política. Pequenos esforços, embora significativos, como o caso humorístico da página “Tesourinhos das Autárquicas” mostram-nos uma realidade absurda, ainda mais absurda quando toda esta incompetência transita do meio eleitoral para o meio executivo. Tentar analisar o material gráfico da Câmara de Vila Real (do passado e do presente, embora os objectos do novo executivo sejam ainda poucos) é uma tarefa penosa, capaz de levar ao desespero qualquer pessoa com um mínimo de sensibilidade. Na verdade, na maior parte dos casos, o design nem é feito por designers. A velha piada do sobrinho que tem jeito para computadores e faz uns cartazes giros aplica-se literalmente. O desprezo pela comunicação é quase total, e não se pense que por haver concursos ou atribuições de projectos a designers a coisa melhora.

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Recentemente, e já com uma mudança de cor e de caras nos Paços do Concelho, surgiram dois cartazes realizados pelo atelier Mais Design para as festas de Natal e de fim-de-ano em Vila Real. O mesmo atelier realizara já o projecto da agenda cultural de Verão da cidade. O recurso ao atelier Mais Design (que poderia ser outro qualquer) pode evidenciar uma nova preocupação com a imagem, mas em nada representa uma preocupação séria com a comunicação. Na verdade, parece que o único critério para a escolha deste atelier é o facto de estar sediado na cidade. Os objectos de comunicação criados pela Mais Design para a Câmara Municipal de Vila Real são exemplo de um caminho fácil que não chateia ninguém, mas que também não entusiasma. Recusam qualquer tipo de abordagem crítica, antes assumindo uma estética entre o infantil e o vernacular “fofinho”, cansativa e pouco eficaz. São objectos desinteressantes e aborrecidos mas, para o público geral, conciliadores. Curiosamente, esta conciliação generalizada é também reflexo de uma estratégia constantemente imposta pelo poder estabelecido, seja nacional ou local. Na dúvida, o melhor é não causar ondas. Por isso mesmo, e numa época de tanta turbulência social, é conveniente que a atitude de comunicação gráfica seja também ela completamente alheia a qualquer tipo de contextualização com a realidade. O discurso do design do Estado é muitas vezes o mesmo que o discurso político do establishment — evasivo e autómato. É a nível local que podemos começar a tentar evitar esta abstração total do design face à sociedade. Com isto não quero dizer que o design “oficial” do município deve ser político. Bem pelo contrário, mas deve adereçar as problemáticas sociais e culturais existentes sem qualquer tipo de constrangimento. Talvez por esta responsabilidade discursiva ser entendida como um mea culpa por parte dos responsáveis políticos não exista qualquer tipo de evidência que esta preocupação venha a acontecer num futuro próximo. Obviamente devemos ter em conta o objecto-alvo dos cartazes referidos acima, mas não é por anunciarem festividades que deixam de representar a Câmara Municipal, cuja imagem se apresenta tão insípida como o meio que a comunica. Por mais entusiasmantes que sejam estas iniciativas que são oferecidas aos cidadãos, a forma de as anunciar não o evidencia. Fazendo justiça à Mais Design, e porque este texto não foi pensado para criticar o atelier, há que dizer que estas designers fazem o que fazem e nenhuma culpa têm no panorama geral do problema. Culpa tem quem ainda não se apercebeu que a Câmara precisa de ter pessoas qualificadas para poder definir estratégias primeiro, e começar a pensar em ateliers ou designers depois. Sem isto, sofre a coerência comunicativa com os cidadãos.

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É verdade que se vive em Vila Real um novo ambiente e a Câmara finalmente dá a cara perante os cidadãos, que pouco a pouco parecem também ganhar novos hábitos de viver na cidade. Talvez tudo isto se deva ao impulso espiritual que a época natalícia traz consigo, e nesse caso teremos de esperar para termos uma resposta. Ao mesmo tempo, a Câmara parece também querer adoptar um discurso cultural, embora ainda muito precoce (mais uma vez, teremos de esperar algum tempo para tirar conclusões). Num futuro próximo, este discurso não se poderá limitar a presenças nas festas dos canais televisivos nem no lançamento de meia-dúzia de livros, sob pena de se tornar num discurso insuficiente e, até certo ponto, hipócrita — algo que os vilarrealenses conheceram muito bem durante os últimos trinta e sete anos. É preciso também entender, de uma vez por todas, que o apoio à cultura não se faz apenas com dinheiro — faz-se, antes de tudo o resto, com educação. Ao mesmo tempo, é necessário repensar o próprio investimento financeiro, que por muito reduzido que seja (e será cada vez mais reduzido, num país que paga cacilheiros e fecha salas de espectáculos, escolas e instituições) não deve abdicar da análise criteriosa que impedirá o mecenato cultural de se tornar numa forma de tapar buracos. Não nos podemos mais guiar por padrões baixos e achar que cada melhoria é uma solução, por mais insignificante que seja.

É neste âmbito que quero alertar para a necessidade de criar a discussão do design em Vila Real, porque sem ela o contexto cultural da cidade fica amputado. Ao mesmo tempo, a própria funcionalidade de um sistema de proximidade entre os cidadão e os responsáveis autárquicos fica posta em causa. O mau design potencia os mal-entendidos, engana as pessoas e trata-as como ignorantes. Enquanto não houver esta discussão, enquanto não houver este respeito pelo design, Vila Real vai continuar a ser também um deserto sem qualquer tipo de esperança para os próprios designers. É de enorme importância que a Câmara forme uma boa equipa de comunicação e não apenas de marketing, com gente preparada para tomar decisões acertadas e poder desenvolver estratégias de comunicação dignas. Não se trata de ir buscar os designers da cidade numa atitude bairrista — antes de mais, têm de ser designers que respondam efectivamente aos problemas existentes. Cada vez mais se torna embaraçoso ver tantas iniciativas de bom design em Portugal e ao mesmo tempo perceber que as instituições públicas continuam a dar mostras de pura ignorância e incompetência no assunto. Com esta mudança de responsáveis na liderança da autarquia justifica-se fazer (novamente) o apelo. Deixemo-nos do pensamento tacanho que despreza a cultura em momentos de crise, as consequências desta mentalidade serão pagas a um preço cada vez mais caro. Existem, neste momento, todas as condições para Vila Real deixar de se envergonhar do “seu” design — basta investir nele. A escolha parece simples.