O fim da Rua Direita

(foto via página de Facebook Cidade de Vila Real)

(foto via página de Facebook Cidade de Vila Real)

Em Vila Real, como em tantas outras cidades deste país, discute-se intensivamente o problema da “desertificação” dos centros históricos. No entanto, esta discussão raramente resulta em soluções práticas ou eficientes. Chegou-se à conclusão que o centro comercial inaugurado em 2004 foi o grande responsável pelo abandono do nosso centro histórico. Infelizmente chegou-se a essa conclusão enquanto se carregava a mala do carro com sacos da Zara. Tarde demais. Pouco tempo antes, havia inaugurado mesmo ali ao lado o Teatro de Vila Real, hoje o mais importante pólo cultural da cidade. Ao mesmo tempo inaugurou-se a crença de que a cidade só podia crescer num sentido, para uma margem do rio, esquecendo a outra. Se em termos espaciais, isto até é relativamente verdadeiro, pois é nesta nova margem que há mais espaço de construção, já é duvidoso que a actividade e o pulsar da cidade estejam a ser empurrados para aqui. O centro histórico da cidade não tem um apelo exclusivamente utilitário: quando não estão a fazer um percurso casa-trabalho, é normal encontrar um grande número de pessoas que simplesmente saem à rua para passear. À outra margem, vai-se quase sempre com um objectivo em mente e depois volta-se para casa. Ver uma peça no teatro, ir às compras no centro comercial ou às aulas na UTAD. A excepção é o Parque Corgo que, no entanto, tem de ser encarado de forma diferente por não ser propriamente um espaço urbano. É, aliás, um espaço de fuga ao urbanismo, e tem o carácter curioso de funcionar como ponto de comunicação entre as duas margens. Numa grande cidade, a margem do centro comercial e do teatro seria um “dormitório”. Em Vila Real não o é, felizmente, mas não consegue trazer até si a actividade citadina que se pensou um dia.

O facto preocupante não está em ter-se construído nesta direcção, está no desinvestimento no centro histórico que isso fomentou. O comércio local deixou de ser relevante face ao apelo das grandes superfícies. O conceito de passear na rua foi, por muitos, trocado pelo de passear no shopping. Como já disse, demorou demasiado tempo a perceber que tudo isto leva a uma descaracterização da cidade, à perda das suas raízes históricas, populares e culturais. Ganharam-se os vícios pequenos das grandes cidades, sem que nada o justificasse. Tem havido, recentemente, tentativas de reavivar o centro histórico, levadas a cabo sobretudo pela Associação Comercial. Mas mesmo estas tentativas são muito limitadas, enchem as ruas por um ou dois dias e não geram a revitalização necessária. Uma forma de combater isto é a associação abrir-se a entidades diferentes, dar um contributo maior à cidade recebendo ideias e esforços de uma camada jovem que pode ser ignição para uma interessante movida cultural na cidade. Acredito, inclusivé, que há na proliferação de eventos culturais de qualidade uma possibilidade de renovar o centro histórico. Museus, salas de espectáculos, associações, etc, devem ser as armas contra a “desertificação”. Vão sendo, mas podem ser ainda mais, muito mais. E se o centro comercial não vem abaixo, é preciso viver com ele. Não é difícil, porque não tem apenas defeitos, também nos trouxe um acesso comercial que sempre nos queixámos de estar demasiado longe. Mas este fascínio pela novidade cegou-nos completamente para o que Vila Real tinha de melhor, precisamente a sua pequenez. Não do espírito, mas das ruas, das distâncias, das dimensões.

Há uns anos atrás, quando ainda estava em Vila Real e acordava de manhã cedo, costumava passear na Rua Direita ao Sábado com os meus pais. Ver caras conhecidas, caras desconhecidas, cumprimentar gente até ficar aborrecido. Para a frente e para trás, entre a Gomes e o quiosque do largo Almeida Garrett, quando me fartava parava na loja dos meus avós. Ali, na Foto Sousa, martelava uns pregos perdidos, media a bateria das pilhas, via a RTP na pequena televisão azul-translúcido que o meu avô tinha. Às vezes levava um amigo, que o meu avô enganava com as partidas que eu já conhecia e a quem a minha avó perguntava se eu me portava bem. Mas quando lá estava só eu, e porque estas coisas não se partilham, ia à mercearia do Sr. José, mesmo ali ao lado, pedir uma lascas de bacalhau seco. Como sempre fui um magricelas nunca me recusou e aposto que se lá fosse hoje pedir o mesmo ainda o via tirar o canivete e cortar um pedaço salgado que me sabia melhor de que qualquer rebuçado. Nos dias mesmo bons, podia ir à loja da Dona Piedade escolher um brinquedo. Estar na loja dos meus avós era um ponto alto do fim-de-semana. Via gente, falava com velhos e com novos e sentia-me um privilegiado por me poder sentar atrás do balcão. Mas o meu avô ficou doente. Primeiro deixou ele de trabalhar, depois a minha avó já não podia tomar conta do recado sozinha. A Foto Sousa fechou. Tornou-se numa loja de sapatos, depois de telemóveis. Não sei se ainda o é. Entretanto o Sr. Eduardo da loja da frente faleceu. A Dona Eduarda ficou sozinha. No outro extremo desaparecia o Excelsior. Mais lojas fecharam, outras abriram mas não davam, nem dão, sinais de vida. Mais casas perderam os seus habitantes. Uns anos mais tarde o meu avô cedia à doença prolongada que lhe assolava os pulmões. Dois anos depois, em Agosto passado, ia visitar a minha avó quando vi à porta da outrora Foto Sousa uma ambulância parada. A sua fraca condição de saúde fez-me adivinhar o que aí vinha. Vi-a mais uma vez, no hospital. Na madrugada do dia 1 de Setembro a Rua Direita ficava definitivamente mais vazia.

Não é pela análise sentimental que se tiram conclusões do urbanismo de uma cidade. Mas os laços que se criam nas ruas que percorremos diariamente marcam-nos para sempre. É a eles que associamos a experiência e a vivência da cidade. Vila Real foi perdendo os laços mais fortes que a caracterizavam. O seu centro histórico está condenado ao desaparecimento dos habitantes, cada vez mais idosos, e não tem esperança nenhuma de encontrar nos jovens o retorno da sua vida. Ao mesmo tempo, não se demonstra uma preocupação real em inverter a tendência. O apelo de viver, não apenas morar, no centro não existe senão em ocasiões excepcionais. Crescemos para a margem errada e agora é difícil voltar atrás. O crescimento e a evolução urbana não podem ser encarados com desdém, mas a perda de identidade sim. Uma cidade que se quer afirmar como capital (seja do que for), como centro cultural, como ponto estratégico de um país a definhar, tem de se fazer valer dos seus apelos natos, a tal identidade que se perde. Uma cidade destas tem de convidar à efervescência da actividade urbana. Vila Real convida à apatia.

Comentários

  1. Abel Seixas diz:

    na minha infância tudo se passava na rua direita, era o epicentro da bila.

  2. Ilda Pinto diz:

    Após ter saído da “Bila” há 39 anos o meu coração aí ficou e ficará para sempre! O que estás a relatar infelizmente é o cancro do desenvolvimento das grandes cidades.….. que pena que tivesse contaminado a minha.
    Excelente texto!

  3. Andreia Telmo diz:

    Sinto exactamente o mesmo quando visito Vila Real.
    O urbanismo contém tudo isto e muito mais. A experiência de um centro urbano acontece nas ruas e, de facto, Vila Real fica mais pobre com um centro ‘histórico’ pouco activo e uma Rua Direita definhada, vazia e, agora, oca. Perde-se toda uma experiência de proximidade, que é muito difícil de garantir nos bairros e zonas mais modernas. As características e vantagens inerentes a centros históricos ou zonas antigas de uma cidade são impossíveis de reproduzir — a pequena escala das ruas e dos edifícios, as ruas e praças estritamente pedonais, o comércio de proximidade e as relações mais personalizadas que se estabelecem,etc. Tudo isto nos coloca num sentido de existência mais humanizado.
    O planeamento urbano, quando é bom e bem feito (pensado), integra na sua estratégia este tipo de considerações. O problema é que eu acho que a camâra de Vila Real nem planeamento urbano deve ter, quanto mais uma estratégia!
    Obrigada pelo texto. Lembrei-me também dos meus passeios, travessias, compras, cafés e bolos na Rua Direita.

    1. Anónimo diz:

      Absolutamente certo. O texto evoca em mim o interminável vaivém entre a Avenida e a Rua Direita, acompanhando os meus pais nas noites de verão, em conversas animadas com os amigos,( o que nem sempre era muito divertido para mim… ). A Rua Central, com a sapataria Estoril, a loja Fernandes Chaves e outras, era ponto de encontro para amigos e clientes, sempre movimentada, cheia de vida, o verdadeiro coração da cidade. Trazer a cultura ao centro histórico como acontece noutras cidades, seria uma alternativa ao Teatro, único polo de atração cultural da cidade, e seria com certeza uma forma de o revitalizar. Esplanadas e cafés são também muito apelativas ao convívio, dão côr e vida aos espaços urbanos. Onde temos uma no centro, para além da Pastelaria Gomes?

  4. Piras-Piri diz:

    Agradeçam a 20 anos de Manuel Martins. Só numa cidade sem estratégia é que o seu principal polo cultural fica longe do centro a cidade. Vamos todos dar os parabéns ao Martins pela forma como governou a seu belo prawr a cidade por 20 anos, mas a culpa principal até nem é dele mas sim de quem votava nele…

    1. Artur Pimentel diz:

      A criação de uma nova centralidade para a cidade, do lado de lá do rio, pode ser uma das causas do definhamento da zona histórica da cidade, mas não me parece que o Dr. Martins tenha sido o único culpado pela implantação do Teatro, lembre-se então o ministro Carrilho que financiou, nem me parece justo assacar culpas ao Teatro, A Rua Direita tem de encontrar formas de conviver com a cidade e isso é que é importante discutir-se, dado que não imagino que se deite abaixo o Teatro nem o shoping…

    2. Mário diz:

      tem toda a razão, esse artolas só aparecia na rua direita na altura das eleições, gostava de ver os bolsos
      dele devem estar bem recheados e as mão bem untadas.
      desde que desapareceram os computadores da câmara também ele desapareceu…

  5. José diz:

    Já se passaram meia dúzia de anos que deixei Vila Real por motivos profissionais. Feliz ou infelizmente fui obrigado a deixar a cidade que me viu nascer e me fez crescer.
    Sempre morei a dois passos da Rua Direita e fui acompanhando as poucas transformações que foi tendo ao longo dos anos.
    Recordo o frenesim da feira de São Pedro e do jogo do panelo… Mas bom, isso foi em tempos idos que se guardam na memória e já não voltam a ser o que eram.
    E a Rua Direita?
    A Rua Direita é hoje uma rua que desagua num parque de estacionamento no largo da Capela Nova, é uma artéria da cidade que foi morrendo todos os dias um pouco muito antes da criação do centro comercial.
    Ficou ultrapassada na mesma proporção de velocidade que os tempos modernos impõem.
    O que se fez? Rigorosamente nada!
    à boa maneira portuguesa foi mais fácil encontrar um culpado do que arregaçar as mangas e revitalizar, rejuvenescer, reaprender, adaptar…
    Nos dias de hoje, quando passo por Vila Real faço questão de atravessar a Rua Direita e o que vejo é meia dúzia de lojistas à porta das lojas a ver quem passa fumando cigarros. As lojas são sempre as mesmas, ultrapassadas com artigos que já ninguém procura e já não se usam há talvez mais de uma década.
    Será que é assim que se chamam as pessoas para o centro da cidade? Definitivamente, NÃO!
    Capacitem-se as pessoas que as mudanças têm que partir delas mesmas e não estar à espera do apoio daqui e dali para depois fazer mais do mesmo.
    Se a Rua Direita morrer (se morrer?) a culpa é apenas de quem lá está e não responde a quem lá vai.
    Atualmente moro numa cidade que tem uma zona histórica muito rica. Há 2 anos atrás era um local de prostituição, droga e vandalismo. Agora é o coração da cidade onde convivem restaurantes, tabernas e bares e ainda algum comércio, dia e noite e sempre a crescer.
    O saudosismo sempre foi inimigo do progresso e da modernidade.

  6. João Faiões diz:

    Um pequeno documentário que fiz em relação a isto…

  7. João diz:

    Acho que a revitalização do centro histórico e da rua direita passa por um projecto que seja lançado pela camara municipal. Desde a promoção ao comercio artesanal local, promoção do turismo dentro e fora de Portugal, a restauração e a vida nocturna. Quem não gostaria de beber um vinho numa taberna numa casa historica da rua direita? Quem não gostaria de comer umas tapas nesses locais? quem não gostaria de ver eventos tradicionais nessa rua?