O silenciar da rádio com sotaque

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Alexander Rodchenko, Suchov-Sendeturm (Shuchov transmission tower), 1919

Em Trás-os-Montes, como no resto do país, as rádios locais lutam pela sobrevivência e pela relevância. Umas não aguentam a pressão económica, outras caem sob os interesses das empresas mediáticas para as quais é mais conveniente emitir a partir de Lisboa. Mas estas vozes locais que se esforçam por continuar a fazer-se ouvir têm uma função.

Todos os dias, durante mais de 23 anos, os aparelhos de rádio sintonizados para a Rádio Bragançana, espalhados por Trás-os-Montes profundo, fizeram ouvir a saudação costumária: “Bom dia família! Somos a maior família do mundo, a família do Tio João.” Há décadas que Nicolau Sernadela acorda assim os ouvintes transmontanos no seu programa de linha aberta “Bom Dia Tio João.” Mal o programa começa, os ouvintes pegam nos telefones: ligam para fazer as orações da manhã; ligam para tocar realejo; ligam do estrangeiro para mandar saudades aos que cá estão; ligam de perto para mandar abraços a quem está fora. O Tio João conhece quase todos pelo nome e partilha com eles o seu tempo de antena. Porém em Junho deste ano, os membros desta família foram surpreendidos quando, na frequência da Bragançana onde se ouvira a voz rouca do Tio João, encontraram a M80. O programa esteve desalojado durante dois meses antes de ser acolhido pela Rádio Brigantia. Para compreender porquê, há que recuar aos anos oitenta.

“Havia a ideia romântica de que cada concelho podia ter uma rádio, mas não é possível fazê-lo com dignidade”

Em 1984, as frequências portuguesas começaram a encher-se de sons dissidentes. A “epidemia” das rádios piratas tinha começado. Não havia legislação relacionada com a radiodifusão, e isto abriu caminho para os amadores instalarem os seus pequenos emissores nos sótãos, juntarem os seus discos e os dos amigos, e começarem a transmitir, com sotaque e tudo.

A desorganização que se seguiu, com pequenas rádios a ocuparem o espectro de frequências num caos crescente, fez com que o governo decidisse encerrar todas as rádios piratas em 1988 e começar um processo de legalização para as estações. Para garantir que haveria vozes locais neste novo panorama radiofónico, a cada concelho do país foram atribuídas duas frequências de rádio. “Uma rádio só poderia ser temática,” ou seja, ter uma programação dedicada apenas à música jazz, por exemplo, “se no mesmo concelho a outra fosse generalista. Era a forma de garantir que pelo menos uma ficaria ligada à comunidade,” explica Luís Bonixe, investigador que se debruça sobre as rádios locais portuguesas.

A Rádio Brigantia, que emite a partir de Bragança e tem uma forte ligação à sua comunidade de ouvintes, parece um óptimo exemplo disto. No entanto o seu director de programação, Paulo Afonso, vê esta alocação como condenada à inviabilidade. “Havia a ideia romântica de que cada concelho podia ter uma rádio,” diz, mas imediatamente acrescenta: “Não é possível fazê-lo, pelo menos de forma minimamente profissional e digna, a nível concelhio.”

Com antena em Vila Real desde o boom das rádios piratas, a Universidade FM começou a emitir em 1986 e mantém, por sua vez, “uma presença mais ou menos bem conhecida na região,” conforme garante o director, Luís Mendonça. No entanto, mesmo com a importância que tem e considerando que muitos dos concelhos vizinhos, como Sabrosa e Santa Marta, “não têm rádio, não têm um jornal sequer,” também a Universidade FM, “devido ao que o país está a sofrer,” enfrenta grandes dificuldades.

As rádios locais, criadas, segundo o investigador Luís Bonixe, com o objectivo de se constituirem “como um palco para a expressão da identidade local,” começam a perder relevância e, nalguns casos, a ceder antena às empresas mediáticas nacionais. Porquê? E com que consequências?

“Perde-se pluralismo, diversidade, e claro, as rádios locais começam a deixar de o ser”

A Rádio Bragançana, ou RBA, emitia desde 1988 e durante quase todo esse tempo foi a casa do “Bom Dia, Tio João.” Este Junho, sem aviso prévio, o programa não foi emitido. Nem Nicolau Sernadela nem os seus ouvintes foram prevenidos. A quem esperava ouvir uma voz familiar nessa madrugada restou a confusão.

A RBA mudou. A sua frequência foi ocupada pela M80, através de uma parceria com a Media Capital. Na altura, o director da RBA garantia à Lusa que o programa do Tio João tinha deixado de se enquadrar neste novo projecto, que era a única forma de manter a emissora, “face à conjuntura actual e à debilidade do mercado.”

Quão má tem de ser essa conjuntura para que um programa com uma audiência tão fiel deixe de ser viável? A “conjuntura actual” tem pelo menos um ponto comum a todas as rádios locais: “É, naturalmente, a viabilidade económica,” diz sem hesitar Paulo Afonso da Brigantia. “Nós vivemos de publicidade, e se o tecido empresarial for débil isso vai reflectir-se na publicidade. E esse é um problema à escala nacional.” Mesmo a Universidade FM, que pertence à UTAD e tem, por isso, algumas vantagens – ocupa, por exemplo, instalações que pertencem aos Serviços de Acção Social sem pagar aluguer – tem também ela dificuldades financeiras por falta de anunciantes.

A lei da rádio mudou em 2010: Já não é obrigatório haver pelo menos uma rádio generalista por concelho – os projectos locais podem ser todos temáticos. As pequenas estações locais começam a ceder à pressão económica, e abrem-se novos caminhos para a viabilização das suas frequências, como aconteceu com a RBA. “Este cenário é muito apetecível para os grandes grupos de média que assim podem expandir a sua actividade,” explica Luís Bonixe. Desde que a nova lei saiu, várias estações que possuíam emissões locais, como a M80, a Nostalgia ou a Mega FM, começaram a rescindir com os seus trabalhadores e a emitir a partir de Lisboa. O investigador esclarece: “Não haveria nada de mal nisso, não fosse dar-se o caso de esses grupos, quando adquirem essas frequências locais, o fazerem para emissão de programação padronizada e uniformizada. Perde-se pluralismo, diversidade, e claro, as rádios locais começam a deixar de verdadeiramente o ser.”

“Trás-os-Montes é diferente daquilo que querem fazer parecer na televisão, não é?”

Em vez de termos quinze rádios em Trás-os-Montes, podíamos ter três ou quatro,” simplifica Paulo Afonso. “Para garantir naturalmente algum equilíbro editorial.” Luís Bonixe, embora não o coloque de forma tão simples, afirma também que “é preciso repensar tudo isto. É preciso perceber se neste país, com esta dimensão, necessitamos de todas estas rádios locais em todos os concelhos.” Segundo Bonixe, “a função das rádios locais deve ser a mesma de sempre. O que é preciso é perceber quais as que podem manter essa função e esperar delas isso mesmo.”

Essa função das rádios locais reflecte-se, por exemplo, no trabalho da Universidade FM durante as eleições autárquicas, nos concelhos vizinhos de Santa Marta e Sabrosa. “Houve necessidade por parte dos candidatos de fazerem ouvir as suas propostas, e não tinham um espaço, nem jornal nem rádio,” explica Luís Mendonça. “Portanto pediram-nos para nós fazermos um debate, e para fazermos chegar às pessoas algumas das propostas que eles tinham.” Embora a rádio faça a cobertura do concelho de Vila Real, dá uma mão aos concelhos vizinhos que precisam de plataformas onde tratar dos assuntos locais e não as têm.

As pequenas rádios têm, afinal, uma vantagem fundamental sobre as de emissão nacional. “Nós aqui falamos a linguagem de cá, para as pessoas de cá,” resume Paulo Afonso. “As pessoas não se identificam com a visão que têm de nós nas cidades grandes do litoral. Trás-os-Montes é diferente daquilo que querem fazer parecer na televisão, não é?” Entretanto, até ver, o Tio João continua a fazer companhia onde chega a Rádio Brigantia. A função social da rádio local talvez se exprima toda na alegria de uma certa ‘tia’ que, no sexto aniversário da primeira vez que escutara o programa, telefonou comovida para o Tio João esta quarta-feira: “Para quem vivia num poço de tão profunda solidão, e depois apareceu uma luz ao fundo do túnel… olhe, não há palavras. Obrigada, obrigada.”

Imagem: Alexander Rodchenko, Suchov-Sendeturm (Shuchov transmission tower), 1919

Comentários

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