Onde acaba a nostalgia

Há alguns anos que se começou a revisitar a identidade nacional, recuperando ícones e objectos que sempre existiram no quotidiano português, dando-lhe uma volta cool e chamando-lhes verdadeiros, aposta-se na evocação de memórias infantis e na crescente tendência do gosto pelo antigo, pelo tradicional, pelo artesanal. O melhor exemplo disso são as lojas A Vida Portuguesa, onde o ímpeto de comprar é automático, e cujas paredes e mesas mostram um revivalismo do orgulho nacional, uma série de objectos que funcionam como máquina do tempo, desde os sabonetes com papéis habilmente decorados às colheres de pau ou os brinquedos de plástico, vendidos por nada se recuarmos vinte anos. É que nos anos 90 o passado não conquistava tão facilmente, nos anos 80 ainda menos. O futuro era brilhante e tecnológico, amplo e tão cheio de possibilidades que a obsessão era fazer mais, ter mais, fazer mais. Só os saudosistas tinham andorinhas na parede, mas hoje talvez a saudade esteja na moda.

Donas de casas

A minha amiga Joana falava-me de como, na Lituânia, nos mercados urbanos, se encontravam facilmente pins soviéticos, antigos items de propaganda, encontravam-se capacetes de guerra alemães com a cruz suástica vincada. Provavelmente estas compras e vendas eram feitas por coleccionadores, pelo valor histórico das peças gráficas ou bélicas, pelo inegável valor simbólico e possivelmente pela admiração do trabalho artístico ou industrial, mas não se exclui a hipótese da sedução de compra pela propaganda.

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O mesmo dificilmente acontece em Portugal. Não se encontra uma banca que venda merchandising do Estado Novo, a imagem de Salazar e respectivas evocações continuam a ser um tabu no país e não imagino que o argumento de venda de um poster pela sua maravilha gráfica fosse considerado válido, mas há um outro item curioso: O Livro da Primeira Classe, talvez o epítome do casamento da saudade com a evocação directa da ditadura — D de Deus, P de Pátria, F de Família — desde a primeira página é explícita a cristalização dos ideias do regime e as ilustrações de crianças saudáveis a cantar o hino, vestidas com a farda da Mocidade Portuguesa, podiam passar despercebidas num livro da Anita. O valor histórico é inegável, a transparência da mensagem e a própria finalidade formativa fazem dele um totem da época, mas quão eficiente é o público a separar nostalgia de propaganda ou o meio da mensagem?

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Leni Riefenstahl em filmagens

Quando perguntam a Leni Riefenstahl, então já com 96 anos, se não considera que o público alemão espera um pedido de desculpas, a nonagenária sente-se ofendida: desculpar-se pela sua carreira é ofensivo, ela nunca esteve alinhada com o partido nazi, como cineasta era apenas uma ferramenta, o seu propósito foi o cinema e se, para o conseguir, em determinadas alturas, trabalhou para o governo, eram ossos do ofício. O caso de Riefenstahl é paradigmático, o seu papel na História do cinema — e na História do feminismo — é incontornável, mas ambos estão manchados pela massiva contribuição para a propaganda efectiva do partido nazi, por mais que a realizadora insista que se trata de separar as águas e se tente afastar da culpa no crescimento da ideologia.

A propaganda é, na sua génese, a procura de influenciar um público a agir ou pensar de determinada forma. Assim, a consciência da sua intenção anula o seu propósito imperativo: O Livro da Primeira Classe ou O Triunfo da Vontade não são instrumentos de influência sem um público influenciável.

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Salazar mostrando o Mundo Português | Fantasia Lusitana

No caso do Estado Novo, e porque não primou, ao contrário do partido nazi, por uma imagem gráfica que ecoasse pelas paredes da História, a questão é mais subtil, onde está a propaganda? João Canijo criou, em 2010, a partir de imagens de arquivo, um falso filme de promoção salazarista, Fantasia Lusitana, que explora a bolha ilusória da paz em Portugal durante a Segunda Guerra Mundial, passando pela Exposição do Mundo Português às manifestações de apoio ao ministro, o pai da nação, até às peregrinações a Fátima. Nem a curiosidade histórica ou o valor documental das imagens se conseguem, então, sobrepor ao sentimento de apatia trágica, de amargura de sentir que não está tão longe assim — no futuro.

Mapa da Exposição do Mundo Português em 1940

Mapa da Exposição do Mundo Português em 1940

Estes somos nós, mas O Livro da Primeira Classe também é folheado com nostalgia e há quem pense que não era assim tão mau, havia limites, havia bandeiras, havia orgulho e um caminho para seguir, não podia ser assim tão mau, o negrume da fantasia esquece-se, porque tudo é melhor do que a realidade. Numa altura politicamente frágil, em que o público se sente desencantado com o sistema, subjugado aos grandes, em que muitos países da Europa apresentam os mesmos sintomas da Alemanha pré-Nacional Socialismo, estará este revivalismo da propaganda a conseguir uma brecha na consciência pública?