(N. do E.) Norberto Lobo e João Lobo Sexteto tocaram no Teatro Municipal de Bragança a 17 de Dezembro, num concerto organizado pela Dedos Biónicos. A 19 de Janeiro, Norberto (a solo) apresenta o seu novo álbum Fornalha no Conservatório de Música de Vila Real, um concerto promovido pela Covilhete na Mão.

Os sons das coisas

© Fred N. S.

«Toca Norberto, toca! Arrebenta-nos com os tímpanos»1

Dizer que os Lobo “brincam como crianças e discutem como adultos”, seria dizer muito pouco sobre o concerto único e atrevo-me a dizer histórico (só pra bem de ficar de bem com o meu egoísmo) de Norberto e de João em Sexteto, na noite de 17 de Dezembro, em Bragança.

Para começar, o concerto nem era a propósito de Mogul de Jade, nem de Bragança, nem das olarias, nem de música do deserto, nem até desse bicho estranho da Austrália, e aquilo que esteve previsto (metia chuva de certeza) foi aquilo que aconteceu, assistiu-se de boca aberta ou fechada, pra quem tivesse opção, à cumplicidade destes artistas. Colaram-nos à cadeira como quem se importa muito pouco de meter visitas ao barulho de uma discussão de namorados, depois de os termos conhecido empaticamente na vizinhança. A estranheza e o desconforto iniciais são tão grandes quanto a vontade de ficar pra ver o que acontece depois, e se acontece depois.

E isto é uma espécie de resumo daquilo que a vida nos dá com as “experiências”. Quando era miúda descobri como era fixe fazer buracos na terra, fundos! Buracos em sítios diferentes tinham raízes diferentes, pedras, cheiros e bichos diferentes… e depois descobri uma enxada… e depois alguém descobriu que eu tinha descoberto uma enxada e aquilo que eu tinha descoberto com ela. E aquilo que aconteceu entre mim, a enxada e a horta da minha avó… nunca vai ser contado em pormenor….

Quem vai de visita a casa de alguém espera ser recebido com “os foguetes da festa”, que é como quem diz um chá e umas madalenas, e se a coisa se der um vinho do porto (sim, já não me convidam para ir a casa de alguém há muito tempo e isso do chá e das madalenas era coisa dos anos noventa, e agora os licores caseiros é que estão na moda, confere?). Ser arrebatado logo a meio de uma madalena, ainda o chá não arrefeceu, com berros do andar de cima cá para baixo, deixa-nos desconcertados. Toda a gente sabe como esta história acaba, um rol de vizinhos incomodados, um par de amuados que dança entre palavras ferozes, e nós, as visitas, os transparentes, a tentar não respirar. É ali, naquele momento que Norberto e João nos apanham o coração, com a técnica tantas vezes experimentada pelas crianças, a indizível beleza da descoberta nunca é “limpa”.

É preciso sujar muita roupa pra aprender ao que sabe a terra. E é preciso “desafiar” os ouvidos, “limpar” os tímpanos, para se aprender a ouvir. Ouvir música a crescer, os sons das coisas, das terras, dos bichos, dos movimentos, dos corpos, das casas, das tarefas, dos suspiros, é um exercício de que eu nunca desfrutei enquanto criança… Não da mesma forma pelo menos… João, Norberto, e os músicos que os acompanharam, reproduziram em palco os resultados de experimentar, de descobrir, de se sujarem, de parar para escutar o som de muitos silêncios… Esse exercício de audição é um requisito fundamental neste “género” de música experimental (e não era suposto eu usar nenhum tipo de rótulo aqui, mas por falta de palavras melhores, editem nas vossas cabeças, com aquilo que vos parecer melhor) para quem a faz e para quem vai a um concerto. Mas é preciso ainda continuar a elogiar a harmonia, a intimidade e a poética destes artistas, para depois sublinhar que o estudo, e a técnica lhes permitem fazer com que todo este jogo, que varia dos 2 minutos aos 6 e às vezes chega a fazer-nos suar por 10 minutos, faça todo o sentido. Aliás, sou da opinião, de que bater palmas no fim de cada canção é praticamente assumir o desconcerto. Ora, deixo o meu conselho, se estamos no meio da confusão e a confusão é na casa do vizinho desconhecido, o melhor é tentarmos ficar transparentes, estudar o contexto, sem fazer movimentos precipitados, e sair de fininho quando a coisa acalmar.

Por exemplo… (que comece o apedrejamento público!)… sempre achei que músicos que tocavam na nossa frente desta maneira… despreocupada… por puro prazer de “arrebentar tímpanos” (bem o podiam fazer na garagem), só para mostrar o cabedal (do género olha eu a tocar esta guitarra, pannnn pannn pannnn, pannnn pannnn paran, durante uma hora….) era o mesmo que assistir a um acto de auto-satisfação corporal. Se há quem goste, eu dispensava assistir a isso. Mas quarta-feira, aprendi uma lição… Fui lá para isso, porque esta tensão entre mim e o experimental, já vem de longe… Mas isso também é outra história. Certo é que Norberto e João e os músicos que os acompanharam (Giovanni Domenico: Fender Rhodes e piano; Ananta Roosens: violino e trompete; Jordi Grognard: clarinete e clarinete baixo; Lynn Cassiers: voz e electrónica) são seres humanos pouco dados a falsidades, procuram na música, aquilo que procuram na vida, estudam-na e dão-nos o privilégio de ouvir aquilo que com ela conseguem fazer. Certo é que o desconforto das discussões, da música que rebenta tímpanos, é muito pequeno perto da harmonia dos minutos longos que nos ficam das “olarias”, mesmo que lá para o fim a coisa rebente outra vez. Certo é que à brincadeira de crianças se seguem argumentos maduros que nos deixam com muita vontade de ouvir mais, e de ficar ali, transparentes a crescer.

 


1 O crédito da citação vai para o moço lá à frente que proferiu estas palavras.