Quem imprime por Abril?

Tudo-web

Passa muito das onze da noite e os últimos grupos organizados de manifestantes chegam ao Largo do Carmo em Lisboa. Na noite que antecede o dia da celebração dos 40 anos de liberdade em Portugal, o ambiente é de festa, pontuado por rebentamentos de petardos e alguns assobios. Até as palavras de ordem mais duras contra o actual governo e Presidente da República são cantadas sobre o ritmo tropical dos tambores, apitos e uma flauta desafinada. A alegria de celebrar a liberdade é talvez o mais puro protesto, mesmo que não seja o mais eficaz. Cantar no desespero é a derradeira resistência à insensibilidade do poder político que hoje temos. O estado a que chegámos, visto daqui, é paradoxal. Este 25 de Abril tem uma aura diferente de muitos outros que passaram. Não tanto devido à data redonda, mas mais por causa do ambiente de divisão entre o povo e os seus legítimos representantes na Assembleia. A manhã seguinte à festa verá este mesmo Carmo cheio de gente que de forma simbólica saúda os militares e deixa os políticos a falar para si próprios. Verá um Mário Soares a assistir ao discurso de Vasco Lourenço; histórico, dizem alguns, não pelo conteúdo mas pela forma, pela emoção profunda da incerteza que horas mais tarde encherá a Avenida da Liberdade, num gesto popular que repõe alguma esperança numa democracia que se quer participativa.

A participação em democracia faz-se de muitas formas, mas nos momentos de protesto os tipos de expressão são bastante particulares. De um lado há o manifesto gritado, do outro o manifesto escrito, desenhado, impresso. Aqui ainda manda o papel. A possibilidade de se transmitirem estas mensagens é umas das principais heranças da revolução e a evocação da data torna-se especialmente rica em material comunicativo. Quem imprime, então, em Abril, por Abril? A resposta curta é mesmo “toda a gente”. A resposta longa (mas não muito, espero eu), tem de nos levar da edição independente ao panfleto partidário, da bandeira ao jornal, das cores ao preto-e-branco. Felizmente, voltei a casa com muita matéria de estudo.

Apneia

Regressemos ao Carmo. Uma senhora aproxima-se e, sorrindo, dá-nos para a mão uma folha verde com uma frase interrogativa que se impõe a negrito, em caixa-alta, sob o título APNEIA, igualmente formatado. QUANTO TEMPO AGUENTA O HOMEM DEBAIXO DE ÁGUA? À minha esquerda, a Laura recebe a oferta enquanto eu peço um exemplar para mim. É-me recusado — nunca me tinha acontecido! A tiragem é reduzida e só é dado um número por cada grupo de pessoas. Geralmente, quem imprime nestas alturas distribui também, e sabe, portanto, o que faz. Esta Apneia, desde o momento em que nos é dada (ou não) para a mão, mexe connosco. Será partilhada, dividida, lida várias vezes pelos seus vários donos. O auto-denominado “jornal antiperiódico” tem nesta folha (um pouco maior que A3, dobrada ao meio) o seu número 0. Data de 25 de Abril de 2014, mesmo que nos tenha chegado minutos antes do seu oficial lançamento. Lá dentro (que é como quem diz — todas as páginas, interiores ou exteriores, são aproveitadas), há textos de Rui Almeida Paiva. Um poema baralhado, que nos baralha na sua leitura, uma incursão multidireccional sobre a natureza das coisas que se tornam “inamovíveis como uma fatalidade”, ilustrado por André Ruivo. O segundo texto, a história intitulada “O esperguiçar do capitão sem Abril”, fala dessa personagem que deixa a revolução passar à sua porta e morrer numa praça qualquer ali ao lado. Este jornal, editado em dupla pela Dois Dias Edições e a The Inspector Cheese Adventures, com design de Sofia Gonçalves, é um objecto para ler, reler e guardar bem numa colecção para mais tarde voltar a pegar nele. Sem ser retro, evoca uma linguagem que há 40 anos não estaria deslocada, mas é claramente de agora, uma publicação independente da democracia, pela democracia, pela partilha e pela colaboração. No estúdio, na gráfica, na sala de estar, mas sobretudo nas ruas.

Acampada

O-Espelho

Nesta noite animada e ruidosa, muitos mais papéis circularam, e muito diferentes também. Veja-se os próximos dois exemplos. Primeiro, uma pequena folha A5 apenas identificada com a hashtag #AcampadaCarmo. O texto directo, em letras bem legíveis, convoca o leitor para as celebrações do 25 de Abril naquela praça. Foram comuns os cânticos que pediam uma espécie de Occupy Carmo, e esta folha anónima sobra como testemunho dessa vontade que ficou por responder. Noutra dimensão apresenta-se o jornal de parede O Espelho, habitué das paredes lisboetas (mas não só), fora delas é verdadeiramente monumental. Na sua composição assertiva recontextualiza as palavras de Friedrich Hayek, é um manifesto contemporâneo pela democracia, neste número, fortemente marcado pela fotografia de Daniel Blaufuks. É-nos dado em mão antes de ser colado pela cidade. A relação deste jornal com a rua, o recurso a uma forma de comunicação quase perdida, pode ter neste dia um significado especial. Mesmo que seja disponibilizado online (link), é na cidade que se torna popular — não famoso, mas do povo. O discurso que se coloca perante o transeunte, o preto-no-branco que faz os cidadão parar e ler, os textos e imagens que activam os nichos esquecidos do ambiente urbano lembram-nos que 40 anos não apagaram a necessidade de publicar para as pessoas nos lugares que lhes pertencem.

agit

Não só de edição independente se faz a festa ou o protesto, como lhe quisermos chamar. Saindo à rua no dia 25, descendo a Avenida da Liberdade no eclético desfile do povo português, somos abordados constantemente pelos mensageiros das instituições. Neste dia há muitos papéis para levar para casa, e se dominam as cores avermelhadas e os cravos melhor ou pior ilustrados, também nos chegam os flyers de associações culturais, grupos de teatro ou festas que aparentemente nada têm a ver com a celebração em causa. Apenas aparentemente, porque a liberdade também é isto. Naturalmente, nestas ocasiões, os partidos e sindicatos falam mais alto, ou imprimem maior. Por isso não me espanta ter acabado com o jornal agit na mão, publicação da JCP vendida a 1 euro, que me foi impingida um pouco à força mas que é uma boa adição a esta recolha. Ao contrário das edições independentes apresentadas acima, aqui não existem poupanças: as páginas são coloridas, o papel é de qualidade. Quanto à propaganda, os outros que a leiam, mas algo de positivo reside nos facto de os partidos ainda imprimirem assim.

Cine-Clube-Imagem

Fecho este texto a falar novamente de evocação. Acabei o dia 25 na Cinemateca, a assistir a um colóquio sobre “O que é uma cinemateca?”, conduzida pelo crítico de cinema Manuel Pina. O twist aqui reside no facto de este colóquio ter estado programado para o dia 25 de Abril de 1974 no Cine Clube Imagem, antes de ter sido cancelado devido a uma revolução. Falou-se do que era o cinema no Estado Novo, sobretudo do papel dos cineclubes. Manuel Pina disse o que planeara dizer 40 anos antes, acrescentou o que tinha a dizer agora e abriu a discussão ao público. Quatro décadas depois — a liberdade pelo meio — já não se especula o que era uma cinemateca porque ela já existe. Agora critica-se e questiona-se o trabalho feito, fazem-se propostas para o futuro. A poética estava toda lá. Antes do início do colóquio ofereceram-se fotocópias do programa original do calendário de actividades do mês de Abril no Cine Clube Imagem. O texto “Cinema, Cinema”, escrito por Manuel Pina em Janeiro desse ano, dava o mote para os eventos, no tom directo e pragmático de quem queria fazer acontecer. Mas o nosso olhar pára no detalhe irrisório que a história elevou a feriado nacional. Ali estava escrito, com toda a naturalidade, entre outras combinações de algarismos sem significado… “25/4/1974” — essa data que nunca mais seria impressa da mesma forma.