Regresso à Terra Fria

O sol banha a terra fria transmontana que, apesar do nome, hoje encontra os seus filhos de mangas arregaçadas e as suas filhas de saia e perna descoberta. Nesta aldeia, como em tantas do nordeste, a maioria das mãos tem mais rugas que calos. Hoje essas mãos erguem-se para fazer sombra a rostos igualmente marcados pelo tempo, para proteger o olhar do sol que cega.

Georges Dussaud

Georges Dussaud

É sábado, mas o tempo aqui conta-se mais por ritmos que não constam do calendário — o subir e descer do sol, primeiro, o ir e vir das estações, segundo. As manias dos animais e das plantas, que, ainda que menos misteriosos aqui que noutros lugares, mesmo para os filhos da terra fria têm segredos. O troar das buzinas que trazem na traseira de uma carrinha pão ou peixe ou todos os conteúdos de um minimercado de vila, a esta terra que as cadeias de supers e hipers decidiram esquecer. A marcar o passar de mais uma semana, os sinos da igreja chamam para sermão e eucaristia, e o carteiro chega com o Jornal Nordeste.

Este sábado à tarde, da casa do tio Pedro surge um rugido familiar — o motor de tractor que, embora violento, é tão costumário que é quase parte da natureza daqui. Mas não é o tio Pedro — 82 anos, sobrolho franzido debaixo da boina para ver na claridade da tarde, força da natureza personificada — quem vem sentado ao controlo da máquina. O tio Pedro vem no braço, do lado da roda direita, a gritar conselhos por cima do ruído do motor ao neto de dezoito-quase-dezanove anos que traz as mãos crispadas no volante.

O Filipe é neto do tio Pedro e quando era pequeno bebeu das agueiras da rega como os outros miúdos, e levou as vacas castanhas e plácidas para lameiros amplos como os outros miúdos, e aprendeu a andar de bicicleta sem rodinhas quando tinha quatro anos e pouco medo de fosse o que fosse. Como os outros miúdos.

Mas era história de fim-de-semana, porque o Filipe cresceu, apesar dos esforços em contrário, maioritariamente a jogar consola num apartamento, ou a pontapear bolas em estados mais ou menos avançados de decomposição no asfalto de recreios e ruas calmas, numa cidade que apesar de pequena é ainda assim cidade.

O Filipe é neto de um filho da terra fria, o que agora lhe berra, para tentar fazer-se ouvir sobre o rosnar ensurdecedor do tractor, que tenha calma com a embraiagem. Também é filho de uma filha da terra fria, cheia de histórias de madrugadas em longas caminhadas pela neve para chegar à escola e de noites passadas a tentar estudar na luz tímida das candeias de petróleo. Mas o Filipe, ele já não é filho da terra fria.

Georges Dussaud

Georges Dussaud

— Segue os trilhos que já estão feitos! — grita-lhe o tio Pedro.

Na estrada de pó estão marcadas, fundas e claras, as rodas de incontáveis viagens em máquinas semelhantes que já fizeram este caminho. O Filipe, de t-shirt preta e ténis converse nos pedais, a tentar não mostrar insegurança ao comando, redirecciona o tractor para encaixar nestas marcas.

— Isso, vê por onde os outros andaram — volta o tio Pedro. Devido ao volume que é obrigado a usar, o tom elogioso é indistinguível do reprovador.

Ao redor, debaixo de um céu azul-choque, uma natureza-paz. Nalgumas zonas, só castanheiros a perder de vista. Alguns pertencem ao tio Pedro, que os cuida com um carinho reservado a quem conhece. Hoje vai tentar ensinar o Filipe a tratar deles — vai assinalar quais os ramos que impedem a árvore de crescer maior e mais saudável, vai apontar onde se deve e não deve cortar, vai, do alto dos seus 82 anos, empoleirar-se onde calhar, de serrote na mão, para fazer o que precisa de ser feito. Mas por agora os dois ainda não chegaram ao destino.

Por agora, o tio Pedro pousa a mão calejada e dura e enrugada e benevolente no ombro do neto. O Filipe não vive aqui. Só ele sabe quanta pertença sente à terra ampla que o rodeia, de horizontes distantes e azulados, de árvores verdes de copa mansa, de troncos fortes, de gente de mãos duras. Mas por agora, mãos no volante, este neto da terra fria é quem traz a máquina pelo nordeste adentro, qual pródigo bíblico. E vai com um ar que pode bem ser de fascínio.