Rescaldo do TRC ZigurFest 2013

Sábado à noite, quando no Teatro Ribeiro Conceição já se arrumava a casa e na Rua da Olaria se iniciavam lentas caminhadas em direcções várias que não a cama, uns Ermo vitimados pelas circunstâncias que em Trás-os-Montes enchem copo atrás de copo diziam-nos que “Lamego é a puta da loucura!” Não duvidamos dos Ermo, fazê-lo seria duvidar da própria realidade, seria pôr em causa tudo o que vimos em Lamego, dos manos Guedes aos manos Motards, e ainda bem que não fomos sozinhos e há sempre alguém que nos lembra que estivemos lá. Analisemos, então, a afirmação dos manos Ermo.

Lamego 01

Lamego by night

Como devem ter imaginado pelo título, estávamos em Lamego a propósito da terceira edição do TRC ZigurFest, o festival de música moderna organizado anualmente pela promotora/netlabel ZigurArtists. Para os dois últimos dias de Agosto, Lamego reservava um cantinho para as várias dezenas de pessoas que, alternando entre o teatro e a rua, foram assistindo aos concertos de bandas como os Memória de Peixe ou o segundo round da luta titânica entre Black Bombaim e La La La Ressonance. E era mesmo um cantinho para “nós”, porque o cenário em Lamego esteve tão preenchido que a evolvente chegava por vezes a atingir contornos surreais. Vejamos, além do festival, acontecia a concentração motard, as preparações de uma das maiores romarias religiosas do país, desfiles de moda, festas da TVI, incêndios a toda a volta e, para o cenário ficar completo, as obras de iniciativa eleitoral que nos sujaram os sapatos.

1º Dia
A recepção na Rua da Olaria é feita ao som de Manel DX. Debitando os últimos versos da sua actuação, o rapper da casa já não está em palco e circula pelo meio daqueles que resistem ao calor que ainda se faz sentir. A esta hora, Lamego ainda não é “a puta da loucura”, mas antes um forno do caraças. A inclinação da rua não nos ajuda à sobrevivência e lá cedemos à tentação, o Irish Pub é mesmo ali ao lado! Devidamente hidratados, partimos para duas conversas com artistas da Zigur que actuariam no dia a seguir. Os Was an Outsider fazem o seu soundcheck quando saímos de ao pé do palco e voltamos para os ver terminar o concerto, embalando o público para a pausa do jantar. Esta é a altura ideal para conhecer melhor Lamego. O Sol põe-se e a temperatura baixa, há tempo para procurar o repasto ideal e encher a barriga para a maratona que se inicia já a seguir, no Tetro Ribeiro Conceição, num arranque que fica a cargo dos supracitados Ermo. Apesar do atraso, são poucos os que tomam assento na plateia para ouvir as músicas do novo álbum do duo bracarense, a sair brevemente pela Optimus Discos, anunciam os próprios. Mas diga-se, também, que escolher os Ermo para abrir este palco a esta hora é um erro de casting. Estaríamos muito melhor a ouvi-los numa hora mais tardia, num espaço mais pequeno, aliando a claustrofobia espacial à claustrofobia musical que eles nos propõem. A energia iancurtesca de António Costa em palco contrasta com os rabos confortavelmente sentados nos estofes desta belíssima sala, e não conseguimos deixar de pensar no quanto queríamos estar ali à frente, a levar pancada no corpo e na mente. É pena. Fica assim registado um arranque morno que, no entanto, nos dá boas indicações para o próximo registo da banda, pelo qual esperamos ansiosamente.

Ermo

Ermo

Seguem-se uns Loosers que vêm bem rodados, pouco mais de um mês depois de uma actuação no Milhões de Festa. Perdidos entre horários e entrevistas, acabamos por perder também o concerto, pelo que recorremos à sempre fiável vox populi. Por ela, ouvimos falar de um concertão, que levou gente a sair do TRC de mãos na cabeça, a perguntar-se sobre o que era aquilo a que tinham acabado de assistir. Nunca nos desculparemos por esta falha, e só temos de fazer o apelo aos Loosers para visitarem mais vezes terras transmontanas, sempre insaciáveis de psicadelismo lânguido. Os cabeças de cartaz Memória de Peixe sobem ao palco num TRC bem mais composto, com com poucas cadeiras vazias no início, às quais se juntaram mais algumas quando os respectivos “donos” se deslocaram para a frente do palco para abanar a anca.  O concerto foi tudo o que se podia esperar, um mergulho em loops e melodias bem frescos, momentos ora de exploração sónica, ora de ímpeto dançável, aquele ocasional crescendo que sabemos que vai rebentar a qualquer momento e uma grande sintonia entre dois excelentes músicos. Nada de diferente daquilo a que nos habituaram, e digo-o aqui, ainda bem! São os Memória de Peixe no seu melhor, arrebatadores. A invasão de palco no fim materializou a euforia geral que se sentia na plateia. Nós, os inibidos, agradecemos a imagem.

Memória de Peixe

Memória de Peixe

Fechadas as portas do teatro, a festa continua na Rua da Olaria. Primeira paragem: Tren Go! Soundsystem com os visuais de Slide Jane. Estivemos à conversa com eles sob a aura da Sé de Lamego e estamos ansiosos por perceber a simbiose entre as duas formas de expressão. Ora, se nos permitem, voltemos atrás, quando falávamos de uns Ermo deslocados, e poderíamos sugerir uma eventual troca com o comboio de Pedro Pestana. A verdade é que havia muito mais a ganhar se a vertente visual tivesse sido apresentada em condições mais favoráveis, como as que a sala do teatro podia oferecer. Ao mesmo tempo, alguém muito pouco inteligente faz o seu sistema sonoro cuspir batidas electrónicas sobre a música do concerto a acontecer mesmo ao lado, sem que ninguém faça nada (ou pelo menos com sucesso) para o evitar. Mas não é qualquer um que pára um comboio e temos, ainda assim, o prazer de assistir a um belo momento de psicadelismo experimental, sempre em frente, como deve ser, sempre espásmico e sempre recompensador. Foi bonito, mas podia ter sido bem mais! A noite é longa e os El Gin & El Tonic tomam conta dos sobreviventes. Nós cedemos ao cansaço, amanhã há mais.

Tren Go! Soundsystem + Slide Jane

Tren Go! Soundsystem + Slide Jane

2º Dia
Chegamos à Olaria a tempo de ver os Dreamweapon, e ainda bem! Rock musculado, com laivos de Sonic Youth e Velvet Underground psicadelicamente modificados. Aqui o calor fez parte do espectáculo, porque a banda do Porto também nos deixa sedentos, num deserto de sons cíclicos que se vão impondo, vozes xamânicas em eco,… experimentalismo q.b. para esta hora do dia. Muito bem, senhores, assim vale a pena o esforço!

Dreamweapon

Dreamweapon

Parecendo que não, já era hora do jantar, mas antes de nos sentarmos numa Taskazita com muito pouco de tascazita, fomos passando uma vista de olhos pelo flea market que se estende por esta rua onde tudo acontece. A esta hora começa o futebol, ao mesmo tempo começa a guerra, o primeiro ganha o lugar privilegiado nas televisões das variadas casas de pasto, mas as nossas atenções não estão nem em Alvalade nem na Síria, há Morsa a subir ao palco do TRC e nós queremos lá estar. Inicialmente, Morsa era só o Manel. Depois juntou-se a Daniela, e depois, porque não?, juntaram-se os amigos e deram um concerto. À nossa frente frente, impoem-se numa espécie de Morsa Experience, com os visuais de João Pedro Fonseca a tomarem conta de toda a largura do pano de fundo. Jogam em casa e levam a vitória: casa quase cheia, muitos sorrisos e um aplauso efusivo no final. Podemos apontar algumas falhas no som, que tornava a voz, por vezes, algo imperceptível, mas a experiência funciona e a aposta está ganha. 

Morsa

Morsa

Segue-se Stereoboy, que entre acordes suaves e electrónica inocente, nos deixa embalar numa viagem adolescente. Luís Salgado vai mantendo animada a conversa com o público, não esquecendo que muitos pensam no concerto seguinte: “Vamos agora terminar, que há coisas a sério a passarem-se a seguir”, disse antes de tocar a última música.

Stereoboy

Stereoboy

E de facto chega a hora em que o ambiente muda, sabe-se que é deste momento que muita gente está à espera. Uns porque à primeira foi bom demais para não repetir, outros porque a proposta é tão aliciante que não se arriscam a perdê-la outra vez. Ainda é apenas o soundcheck mas a sala já começa a ser preenchida. O início deste concerto é brilhante. Em palco, Tojo Rodrigues e Andre Simão, Black Bombaim e La La La Ressonance, duas bandas e duas gerações, prepara-nos para a viagem que temos em frente. O baixo “ao desafio” abre portas ao noise, já com toda a gente em palco, que por sua vez culmina nas batidas tropicais que nos desarmam e nos fazem sentir impotentes perante tanta mestria. Esta gente sabe dar concertos! São 45 minutos em que desfilam canções novas com um cheirinho do repertório das duas bandas, saltamos de paisagem em paisagem, numa epopeia episódica mas sempre coerente e natural. Chegamos ao fim com os ouvidos a queixarem-se. Na verdade, esta segunda mostra da fusão talvez não tenha chegado ao nível daquilo que vimos no Milhões, mas não e arrisco a dizer “pior”. Talvez faltasse a surpresa da primeira vez, ou talvez as cadeiras estivessem a mais. Se no festival de Barcelos ficou a impressão de um arranque lento que culmina numa mistura cósmica, aqui o arranque é bem melhor mas nunca atingimos o ponto G. Isto é outra maneira dizer que não há duas sem três, e que teremos todos o prazer em tirar a prova dos noves, tantas vezes quantas forem precisas.

Black Bombaim + La La La Ressonance

Black Bombaim + La La La Ressonance

Saímos então à rua, pela última vez. Os Naco substituem os Quelle Dead Gazelle e devemos referir que, apesar de termos tomado conhecimento da alteração algumas horas antes, a informação deveria ter passado para o público todo, nomeadamente através das redes sociais. Um festival que se caracteriza pela familiaridade, pela proximidade entre organização, artistas e público (sem esquecer a cidade) não pode deixar passar estes pequenos detalhes, que apesar de não comprometerem a experiência, são importantes para consolidar o evento como uma referência e não apenas mais um. Reparo feito, os Ermo estão de volta e não podíamos pedir melhor companhia. Mr. Herbert Quain toma as rédeas da Olaria e faz-nos acreditar que festa só começa agora. Lamego já é “a puta da loucura”. Em 2014 cá estaremos outra vez, para um dos nossos fins-de-semana preferidos do Verão transmontano!

Até para o ano, Rua da Olaria!

Até para o ano, Rua da Olaria!

Comentários

  1. John Fucks diz:

    Boa Review/crítica! Apenas tenho um reparo a fazer:

    Esqueceram-se de fazer a análise (nem sequer foi mencionada) uma das bandas que fez parte do cartaz deste ano — BEFORE AND AFTER SCIENCE.

    Obrigado e mantenham o bom trabalho

  2. […] para aí duas da manhã. É altura de descer um pouco e ir até à tão movimentada rua da Olaria, palco na semana passada de concertos do Zigurfest. Esta rua já foi uma das mais importantes para o comércio local. Entretanto as lojas foram […]

  3. […] impressões do TRC Zigurfest no rescaldo e nas entrevistas com Morsa, Mr. Herbert Quain e André Simão (Black Bombaim + La La La […]