Rock Nordeste | Rescaldo
Às quatro da manhã do dia 28 desligava-se a música no Palco Parque do Rock Nordeste, e se a já-nostalgia de fim de festa tomava conta daquele cenário transfigurado era porque os últimos dois dias tinham sido memoráveis. A ressaca do festival, regressado e com um conceito renovado trazido pela co-produção a cargo da Covilhete na Mão, fez-se de sorriso na cara. Voltamos agora a trás para perceber porquê.
No dia 26, quinta-feira, enquanto se ultimavam os detalhes da festa que se avizinhava, os primeiros curiosos iam chegando ao recinto idílico do Rock Nordeste. Muitos não esperariam certamente encontrar um cenário daquelas dimensões, tão bem resolvido e preparado, e, juntamente com o regresso do bom tempo, um prenúncio de sucesso para o festival. Antes de os Octa Push subirem ao palco, a exposição de fotografias de Ângelo Silva — “Portugal Rebelde em Palco”, uma retrospectiva de dois anos de trabalho do fotógrafo para este blog musical — dava o mote para quem chegava para os concertos.
O concerto de Octa Push começou ligeiramente atrasado, mas verdade seja dita, beneficiaria de ter começado ainda um pouco mais tarde, podendo ter reunido mais público, com a digestão já feita e outra disposição para dançar. Ainda assim, a banda soube conquistar a pista tropical em que o relvado se foi transformando, sobretudo com os temas de ponta do último álbum, “Oito”. Antes do concerto falavam-nos da importância de fazer a festa, e ninguém se pode queixar de esta ter sido desleixada. Não houve mankinis, mas houve máscaras de Paulo Bento, a única forma de sorrirmos perante o risco ao meio que horas antes punha muita gente indisposta.
Um dos nomes mais fortes do festival, Capicua trazia um espectáculo único e bem diferente do que o público vilarrealense está habituado. Desde logo pelo hip-hop “boa-onda” com a chancela portuense bem vincada, mas também pela interação com o designer Dário Cannatà, que ilustrou ao vivo as rimas que Capicua e M7 descarregavam sobre o numeroso público. Este, de braço no ar, respondia entusiasticamente ao alinhamento de músicas, marcado sobretudo pelo mais recente álbum “Seria Louca”, cuja história dava o mote para o concerto. O ambiente animado e bem-disposto foi tónica dominante, talvez por isso Capicua tenha revelado o desejo sincero de voltar rapidamente a Vila Real. Nós ficamos à espera!
A Bandit Room assumiu o fecho do primeiro dia com Switchst(d)ance a dar música para os últimos passos de dança no Parque Corgo. Acabou cedo, talvez cedo demais, mas felizmente ainda faltava um dia de Rock Nordeste.
No dia seguinte o início foi lento e preguiçoso para o público, por isso, enquanto alguns se esticavam no relvado ao sol, outros aproveitaram para passear pelo Vila Real Urban Market, mais uma actividade satélite promovida pelo festival, que juntou coleccionadores, criadores e acumuladores em mais de uma dezena de mesas de venda. O VRUM foi sobretudo alvo de curiosidade, preenchendo o fim de tarde de muitos e, pela descontracção, diversificando o público do Rock Nordeste — crianças corriam pelo relvado fazendo os cataventos girar, idosos sentavam-se à sombra no muro e por todo o lado gente percorria o recinto, dormia sestas ou punha os finos em dia fazendo o melhor uso do atraso inesperado e do bom tempo encomendado especialmente para os dois dias do festival.
A primeira banda deste dia, Brass Wires Orchestra, continuou esse ambiente multi-geracional e descontraído, fazendo uma passagem eficaz do ócio de relva e sol para a energia dos concertos. Tinham apresentado em Lisboa, na noite anterior, o disco de estreia, “Cornerstone”, e no dia seguinte seguiam para o Porto para o segundo lançamento oficial, por isso foi como se trouxessem até Vila Real, num grande palco, um falso concerto de lançamento do novo disco: sem entrada cobrada mas com os mesmos benefícios. Uma das apostas que marcava o eclectismo deste renovado Rock Nordeste, a banda de folk lisboeta teve uma actuação entusiasmada, amigável e family friendly, enquanto alguns grupos se bamboleavam ao som dos trompetes, os cataventos continuavam a girar e uma considerável fatia do público se juntava nas filas da frente, por curiosidade, maioritariamente feminino.
O concerto de The Glockenwise acabou por se ressentir do atraso geral, com bastante menos público a afluir ao Palco Parque, muito por causa da coincidência com a hora de jantar. Mas foram apenas os números que sofreram, porque a banda de Barcelos acabou por dar um dos concertos mais intensos de todo o festival, com a mesma energia de quem toca para uma multidão. Por isso mesmo, a reacção do público foi um crescendo, com cada vez mais gente a aproximar-se das filas da frente, culminando na invasão de palco de um Suarez transmontano. Com um alinhamento especialmente focado no álbum “Leeches”, o último da banda, que celebra por esta altura o seu primeiro aniversário, os The Glockenwise demonstraram aquilo que são: uma banda de rock totalmente descompremetida e simultaneamente dedicada, feliz por estar em palco e poder tocar — muito ou pouco tempo; para muitos ou para poucos. O epicurismo Rock ’n’ Roll teve aqui a sua expressão máxima e quem adiou o jantar saiu na mesma bem servido.
Numa mudança (quase) radical de cenário, onde a presença paradisíaca do parque foi substituída pelo cenário de cimento e pedra no Auditório Exterior do Teatro de Vila Real, chegou o concerto mais esperado do dia, e provavelmente de todo o festival. Os Dead Combo actuaram para uma multidão atenta e totalmente receptiva, que bebia cada música em transe, aplaudia e participava de uma forma pouco habitual para o público vilarrealense, era amor musical. Foi um concerto inebriante, em que os três músicos em palco — ao duo Pedro Gonçalves e Tó Trips junta-se o baterista Alexandre Frazão — garantiam que o nosso olhar não era dirigido para outro ponto senão o palco, os instrumentos, as expressões corporais, os movimentos e a energia espessa que dispensavam a cada tema. Profundamente introspectivo e com uma qualidade instrumental viciante, despejada em palco sem contenções, o concerto dos Dead Combo, mesmo já tendo passado por Vila Real algumas vezes, foi inegavelmente especial, cuidado e denso. Pareceu, contudo, que afluência extra de público não deu o benefício da dúvida ao resto do festival, descolando esta actuação do resto do cartaz.
Os Sensible Soccers fecharam o alinhamento de bandas do festival e foram a transição perfeita para o after electrónico. Mas este concerto foi muito mais de que um passar de tempo entre dois momentos, trazendo a Vila Real uma das sonoridades mais entusiasmantes a serem exploradas no panorama nacional, e não desiludindo de forma nenhuma ao vivo. O muito público que assistiu ao espectáculo teve a oportunidade de presenciar uma apresentação exímia das músicas do LP da banda, “8”, um trabalho já por si só notável. Construindo ambientes lânguidos altamente dançáveis, naquilo que alguém nos descreveu como “sexo tântrico”, os Sensible Soccers assinaram uma performance memorável, que culminou no já icónico single “Sofrendo Por Você”, um encore com direito a dança em palco. À semelhança do concerto de Capicua, embora de forma bastante diferente, este foi um momento único, um concerto para recordar pelo espectáculo integral que a banda sabe montar em palco e cujo facto de o vermos desenrolar à nossa frente é nada menos que um privilégio. Se dúvidas havia, em tempos futebolisticamente conturbados, a resposta estava ali: jogar bonito é isto.
O fecho de noite tornou a ficar a cargo da Bandit Room, primeiro com Midnight, pseudónimo de André Granada, que, em modo cobra de rabo da boca, incluiu no set um dos temas de Octa Push, que já tínhamos ouvido lá longe no início do Rock Nordeste. Seguiu-se Steve Parker, o público foi-se alterando com o desenrolar da noite e do techno, mas só perto do final os números começaram a diminuir e às quatro da manhã, pontualmente, o som parou.
O Rock Nordeste é um festival estabelecido na cidade e, depois do desaparecimento no ano passado, renasceu em 2014 com novas apostas, superando as expectativas e alimentando muitas mais quanto ao futuro do evento. Esta nova cara veio provar especialmente que a música portuguesa não tem desculpas para nadar na piscina dos pequeninos, que o grau de exigência não deve ser limitado pelo território e que há espaço para mais, maior e melhor em Vila Real.