Sobre Valter Hugo Mãe, o povo escondido da Islândia e os “fiordes” transmontanos

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Quando tinha dez anos escrevi um poema sobre o 25 de abril e fiquei em 3º lugar num concurso da câmara municipal. Houve outras conquistas pequenas no mundo dos concursos de fomento à escrita infanto-juvenil mas depois aconteceu a adolescência. Comecei a viver de emoções e tempo livre. Comecei a ouvir a música e a ler os poemas dos outros e foi assim que me apaixonei pela primeira vez. Foi com eles que aprendi a namorar livremente. Em segredo construía-se-me uma vida adulta. Mas ainda antes disso, no Porto, descobria os milhares de livros que à distância de cinco horas de autocarro não tinha acesso “nos fiordes transmontanos”.

O encontro com a poesia de Valter Hugo Mãe era coisa de mais dia, menos dia e ainda era poesia da tristeza e do entusiasmo pela vida. Um dois-em-um muito raro entre portugueses. O encontro deu-se “três minutos antes de a maré encher” na biblioteca Almeida Garrett e quinze dias depois numa livraria. Mas não se pode encontrar poesia e ficar-se com ela. Por amizade, por amor e por muita vadiagem, os livros que dei de presente, regressaram, quase sempre, com outra capa, outro nome, e outra estória, e desses nunca me desentreguei. Foi por isso que no sábado escarafunchei as caixas de papelão, à procura d’O nosso reino, a primeira prosa de Valter Hugo Mãe, e eu tinha-a comigo e podia carimba-la!

O encontro havia de acontecer já passava da meia-noite e tinha sono (uma desculpa que me serve para qualquer coisa parva que tenha dito e de que se venha a saber). Estava lá como jornalista de larga experiência entre as entrevistas ao presidente do clube de caça e pesca, ao comandante dos bombeiros, à banda filarmónica do Brinço, ou ao último sapateiro de Morais. Ainda que seja um privilégio ser convidada à casa de alguém só porque lhe tirei uma fotografia para o jornal, esmorecia-se-me a confiança à medida que avançava a conversa.

E de repente pouca gente se sentiu à vontade de fazer perguntas a um escritor premiado. Uma visita rara por aqui (culpa da falta de programação cultural descentralizada e culpa nossa). Então o homem falou. Era tempo de voltar às conversas, e de falar dos nossos livros, disse-me depois, quando lhe perguntei como era isso de estar escondido do mundo, tanto tempo, a escrever um livro.

O jeito de agradar, não era dos prémios, era mesmo dele. Fez rir toda a gente e fez chorar a vereadora da cultura que também tinha feito quilómetros de emoção entre o primeiro livro que leu do rapaz e A Desumanização que escreveu, agora, já homem.

Fiquei com a sensação de que ninguém que remotamente tivesse ouvido falar no nome de Valter Hugo Mãe e habitasse esta terra no sábado à noite quis faltar ao encontro, mas quase todos os que assistiram e os que, incluindo eu, fizeram questão de não perder a oportunidade de lhe falar (a coisa da entrevista foi só mesmo porque tinha que ser).

Será porque temos vergonha de existir, seria porque era mais importante ouvir do que falar. Entre um perguntador tímido e outro ligeiramente mais confiante, Valter Hugo Mãe levou-nos a um país distante do nosso, a Islândia. Um país onde diz ter encontrado gente que o convenceu de estarem convencidos de que nas grandes pedras daquele território insular vive um povo escondido. Um país onde a natureza tem tanta vida que há associações de defesa dos interesses dos elfos (outra crença popular). Valter Hugo Mãe, conheceu na Islândia um homem de 60 anos que estava triste porque nunca tinha visto um monstro marinho. O homem estava triste porque aos 60 anos, ainda não tinha visto o que toda a gente que conhecia tinha visto, era virgem de avistamentos de monstros marinhos, um esquisito. Um mundo que acredita na vida é um mundo de gente que nunca está sozinha, nem nos sítios mais ásperos da natureza. (Lá se foi uma pergunta da entrevista).

Deixei de estar presente e voltei, anos antes, à primeira prosa, O Nosso Reino. Um miúdo recebe uma graça de um santo, e na vila todos crêem que há-de vir a ser um santinho. Preocupado com o bem e com o mal, o miúdo inspira-se na vida que se lhe promete e aperfeiçoa-se na feitura de coisas boas. Há-de descobrir que a prática das coisas boas não é coisa fácil e que aqueles que é suposto fazerem bem, nem sempre o fazem. Fiquei ali, entre os fiordes islandeses e o reino atrás dos montes (O Nosso Reino não se passa em Trás-os-Montes, mas num lugar com a mesmíssima matriz religiosa e cultural e por isso aplica-se). Sempre tive medo dos uivos da montanha, apesar de a minha avó sempre me ter dito que eram anjos.

Uma mulher de 87 anos, que borda às noites, sem estragar as vistas e por entretenimento, viúva, que lavrou a terra, comprada e perdida em Angola, e regressou parindo 13 vidas, não sobreviveria à loucura se não acreditasse na vida que há dentro e fora deste mundo.

Fico aqui, em Trás-os-Montes. Entretanto oiço falar da morte. É sobre a morte que escreve Valter Hugo Mãe em A Desumanização, o livro que o trouxe cá e que se passa na Islândia. Uma menina que perde a irmã gémea e que cresce com dificuldade em acreditar, porque o nome dos que perdemos não é mais do que uma palavra e uma palavra não se pode abraçar, contava o escritor. (Lá se vai mais uma pergunta da entrevista).

Nas colinas do Sabor há rochas encarrilhadas até bem alto. Um dia, um pastor garoto perdeu duas cabras nas rochas. Escapuliram-se-lhe p’ra lá sem maneira de retroceder. Encontraram-lhe o corpo dois dias depois e nesse momento a alma viu-se-lhe fugir. Embora tenha as minhas dificuldades de acreditar estou bem convencida da crença de quem ouviu contar de quem ouvira contar de quem lá esteve.

Regresso à conversa e fala-se do tempo e das dificuldades transmontanas, fala-se de futuro e de passado e de um menino da mãe crescido escritor. Valter Hugo Mãe fala sobre outras coisas, mas nunca fala sobre o amor. Ninguém lhe perguntou nada. (Nem sou eu que lhe vou perguntar.) Mas o amor está sempre lá, em todas as linhas. Digo-lhe obrigado por ter cá vindo e fico-me por aqui.

Se a história de A Desumanização nos faz questionar a forma como a vida se manifesta, o inanimado e o transcendente, retirando-nos deste contexto pagão-católico que temos no gene, fá-lo transportando-nos para essa sociedade inteligente de democracia eficiente (para que não haja desculpas fáceis, associando a crença à ignorância). Valter Hugo Mãe dá-nos ainda de presente a melhor literatura portuguesa, um jeito de escrever difícil e uma leitura fácil, o simples complexo dos grandes contadores de estórias.

[Valter Hugo Mãe esteve na livraria Poética em Macedo de Cavaleiros, sábado 15 de fevereiro a apresentar o seu mais recente livro “A Desumanização”, publicado pela Porto Editora.]