Soldado Milhões

Onde estiver um transmontano está qualquer coisa de específico, de irredutível. E porquê? Porque, mesmo transplantado, ele ressuma a seiva de onde brotou. Corre-lhe nas veias a força que recebeu dos penhascos, hemoglobina que nunca se descora”

Estas bonitas palavras escreveu-as um dia Miguel Torga, e transcrevo-as eu aqui em jeito de introdução por duas simples razões: Primeiro, porque se houve transmontano a encarnar de forma tão leal o espírito destas gentes que Torga exulta, foi este filho da terra que em terra alheia se fez herói. Segunda razão, puro pretensiosismo. E do fácil, Torga e Trás-os-Montes é como queijo e marmelada, no entanto é giro e dá sempre aquele ar de “este gajo sabe, deve ler e tal”. Mas adiante.

O herói desta história — Aníbal Augusto Milhais, nascido numa aldeia de Murça no ano de 1895 — foi tão herói que de Milhais passou a Milhões. E foi herói numa das situações mais lixadas (eufemismo total) em que um indivíduo se podia encontrar nos primeiros anos do séc. XX. Uma situação a que posteriormente se deu o nome de Primeira Grande Guerra, e mesmo os mais desatentos nas aulas de História devem ter umas noções base do quão lixado aquilo foi. Especialmente a parte do conflito conhecida como guerra das trincheiras. Não vou dar uma de Hermano Saraiva e entrar em pormenores que podem encontrar facilmente com uma pesquisa no Google, mas imaginem o que é viver tempos infinitos numa vala escavada, gelado, mal equipado, mal alimentado, sem WC digno desse nome, a apanhar doenças com sufixo –das trincheiras. Isto para não falar dos cadáveres a toda a volta e claro, aquele stresszinho constante de ataque eminente.

E era justamente num desses infernos enlameados — 55 km de vala em terras belgas — que Aníbal e a maior parte dos 20.000 soldados portugueses da Segunda Divisão do (agora famigerado) Corpo Expedicionário Português se encontrava no dia 9 de Abril de 1918. Defendiam há séculos, com uma cambada de bretões, a linha mais avançada da frente de combate quando se lhes arrebenta na cara a Batalha de La Lys e uma avalanche de 55.000 alemães vindos assim de repente sabe-se lá bem de onde cilindra completamente a frente de combate. Segundo os registos oficiais, só nas primeiras quatro horas o balanço foi de 1938 mortos, 5198 feridos e cerca de 7000 prisioneiros. Façam as contas. A última vez que lerpamos desta maneira em campo de batalha foi naquela pequena brincadeirinha em 1578 que teve como notórias consequências a perda da independência, dar outra conotação a manhãs de nevoeiro e claro, aquela malha dos Quarteto 1111 que serve como desculpa mais ou menos esfarrapada para espetar com isto aqui:

Como Alcácer-Quibir, uma tareia destas não acontece por acaso e mais uma vez temos que apontar o dedo à incompetência das hierarquias superiores. Nós, os portugueses, filhos de um país pequeno mais que habituado a desvantagens numéricas, de tal maneira calejados a arrear em mouro e espanhol que nem o Napoleão cá meteu as unhas, lá fomos batalhar à boleia nos barcos dos camones, mais equipados para um pic-nic nos Pisões que propriamente uma guerra (expoente máximo daquela lógica mesmo à tuga do DIY — desenrascate it yourself). O Corpo Expedicionário Português estava em frangalhos, desmoralizado e faminto, aguardando pela rendição que nunca viria. Um desastre à espera de acontecer. O recuo mariquinhas dos britânicos que abriu, de passadeira vermelha, os flancos aos alemães também não ajudou à festa.

Mas este nunca foi um país de meninos, e ali no meio havia um que era menos menino que os outros todos. Ao longo da nossa história acumularam-se resmas de relatos de actos gloriosos perpetrados por gente completamente insana, sem qualquer sentido de auto-preservação ou senso comum. E da mesma fibra kamikaze que se fez um Martim Moniz fez-se então — directamente dos sangrentos campos de Isberg para as páginas da nossa história — Aníbal Milhões.

Longe de ser um portento físico mas homem recto e de digno bigode, Aníbal — ainda Milhais — encontra-se então de repente isolado numa trincheira, debaixo de forte saraivada alemã. Como companhia tem apenas uma metralhadora Lewis chamada Luísa, como eram Luísas todas as outras armas desse modelo. Pelo menos para a nossa malta (hey, antropomorfismo é giro. E já que estamos numa de nomes, o gajo que a inventou chamava-se Isaac Newton Lewis! Surreal). Não há por onde fugir e os alemães avançam certinho. E a disparar certinho. Entre a espada e a parede, Aníbal sabe que as opções não são muitas nem agradáveis: pode resistir, sabendo que o mais provável é acabar com o corpo cheio de chumbo e nunca mais comer sarrabulho em Valongo, ou pode render-se e esperar que o campo de prisioneiros não seja assim tão má onda.

E por esta altura acredito que todos vós já adivinhastes o que se passou a seguir. Quanto mais não seja pela referência anterior a “kamikaze”.

Numa atitude que demonstrou que as mais rijas fragas transmontanas se encontravam ali mesmo naquela virilha, esticou o dedo do meio bem esticadinho às probabilidades, e, após gritar um estrondoso “NUM BAI DAR” (tomei a liberdade de inventar esta parte) levanta-se agarrado à sua fiel Luísa e começa a metralhar como se não houvesse amanhã (pun fácil, eu sei) tratando primeiro de limpar o sebo a uma coluna inteira de moto-alemães, e depois a tudo o que mexia. Sangue e lama esguichavam em câmara lenta quando os corpos fuzilados embatiam no chão, John Rambo soltou uma lágrima e uma luz rasgou os céus. Era um meteorito, que, atraído pelo campo gravitacional produzido pelo maciço gonadal de Aníbal, entra em órbita de colisão com a Terra. Acabou por cair no Ártico, ferindo ligeiramente dois caçadores de focas Inuítes. (Sim, estou a inventar outra vez. Mas caramba, se não fosse para florear isto um pouco mais valia espetar aqui com dois ou três links da wikipédia, escrever “LEIAM” e ficava feito).

Tão incrível foi a façanha que o outro lado continuava genuinamente convencido que aquelas trincheiras estavam carregadas de soldados. Mas não. Percebendo a deixa, os sobreviventes aliados bateram em retirada para agrupar e lamber as feridas, 30 km lá para trás. Eventualmente Aníbal juntou-se a eles — provavelmente quando decidiu que se calhar já estava a abusar um bocadinho da sorte — QUATRO DIAS DEPOIS. Quatro dias de deambulação solitária, sem praticamente nada para comer, sem descanso, a apanhar munições do chão para ir distribuindo lenha pelo caminho, e salvando ocasionalmente um escocês que chafurdava num pântano. Um último acto de bravura que lhe valeu a mítica aclamação do comandante Ferreira de Amaral “Tu és Milhais, mas vales milhões”, pois foi este digno highlander quem relatou ao exército aliado — e ao mundo — a espantosa odisseia de Aníbal. Da boca do acanhado transmontano não saiu nem um pio. Tau, a classe, o nível. Fosse eu e a primeira coisa mal chegava ao acampamento era ” CHIÇA, TU VISTE-ME BEM AQUELA DAS MOTAS? TU BATES MAL, MAN. E VIR À BELGICA E PESCAR UM ESCOCÊS? TOP!”

Podiam os actos extraordinários deste nobre serrano terminar por aqui que já ficávamos bem servidos, mas ainda havia uns cartuchos para queimar naquela guerra e portanto tempo para Aníbal voltar a brilhar. Talvez tomado pelo gosto ao massacre germano, ou talvez seguindo a lógica do equipa que ganha não se mexe, carregou mais uma vez sozinho à força de metralhada a retirada de um batalhão inteiro de infantaria, desta feita em Ferme du Bois. Safaram-se TODOS. E diz-se que até ao fim das suas vidas os soldados alemães viveram assombrados pela lembrança daquele majestoso bigode. Mais, ninguém me tira da cabeça que o armistício de Compiègne, assinado a Novembro do mesmo ano, resultou do simples raciocínio “ou um gajo se rende, ou o tuga varre-nos a todos daqui até Berlim”.
Armistício assinado e guerra terminada, retornam então à pátria os esfarrapados sobreviventes do Corpo Expedicionário Português. Ao peito traz Aníbal a Ordem Militar da Torre e Espada, que é só a mais alta condecoração militar cá do burgo.

Atravessa os montes, troca de vez a Luísa pela enxada, casa, enche-se de filhos. Mais tarde a pequena aldeia que o viu nascer recebe uma injecção de testosterona via parlamento e de Valongo passa a Valongo de Milhais. Uma atenção bonita mas que de pouco lhe vale, regressar da guerra foi regressar à realidade empobrecida de um país que nem sempre trata justamente os seus grandes (Camões diz olá). Os quinze tostões mensais que recebe por ter sido Milhões não chegam, e o herói condecorado teve que vergar a mola no campo. “Nem o raio de um tractor lhe deram”. Arrisca emigrar para o Brasil e ganha a comoção da comunidade portuguesa que, usando o equivalente da época ao crowdfunding, recolhe pastel suficiente para que Aníbal seja recambiado para uma merecida e tranquila reforma na terra que o viu nascer e o viu morrer, cinquenta e dois anos após aquele 9 de Abril.

E bom, não havendo muito mais para contar, chega então ao fim esta história. Podia encher-me de moralismo barato e terminar isto mesmo à composição da 4ª classe, a arengar sobre a situação actual do país, chamar-lhe trincheira, meter os alemães ao barulho e perguntar onde andam os Milhões da nossa geração, mas não vos quero maçar. Acrescento só que se quiserem prestar continência ao herói, além do busto em Murça há no Museu Militar do Porto uma exibição permanente onde se encontram alguns dos pertences de Aníbal, pistola e bling-bling incluído.

Comentários

  1. Mário Gomes diz:

    Esta história toca-me muito e gostei muito do texto. Posso acrescentar que, alegadamente, ele salvou uma menina aquando da retirada da batalha de La Lys.

    Entre muitas outras histórias (ter sonhado na noite anterior, dia 8 de Abril, com um santo,etc… )

    Abraço.