Trigo, joio e empreendedorismo

O Arcanjo Gabriel anuncia a Maria que ela foi convidada a fazer parte de um projecto

O Arcanjo Gabriel anuncia a Maria que ela foi convidada a fazer parte de um novo projecto

Empreendedorismo é uma das palavras mais banalizadas dos últimos anos, seja como estratégia de resposta à crise económica, seja pela moda crescente do autodidactismo e do self-made man, esses heróis urbanos e humanos. O espírito empreendedor é usado hoje com alguma leveza, o milagre da sua multiplicação enche páginas de notícias — uma ideia nova, quase imperativamente portuguesa e se a vingar no estrangeiro, melhor. Não lhes tiro mérito, atenção, é produtivo que se inventem coisas como um auxiliar multimédia de preenchimento do IRS, e é preciso que esta vontade em fazer coisas continue mesmo depois do hype do empreendedorismo morrer.

De facto não há qualquer problema no empreendedorismo e há projectos que valem a pena, mas com tantos e em todo o lado (o fatídico problema da internet), como separar o trigo do joio? Pior do que isso, pobre do trigo que passará sempre, à partida, por mais um joiozito que não vale um chavo.

Falemos então desse joio. A presença dele pode ser notada por uma ou várias destas qualidades:
1 O Arcanjo Wannabe, é o joio cuja promoção se baseia em 95% de anunciação e tentativas falhadas de criar suspenspara os outros 5% de conteúdo. A estratégia deste projecto baseia-se em cativar os seus seguidores ao prometer que no dia seguinte fará um novo post de promessa para o próximo evento.
2 O Touretteé o projecto que não se controlou antes de ter uma página no facebook, ou duas, ou três, normalmente vazias porque, obviamente, não há sequer desenvolvimentos para publicar. Elas podiam estar lá em stand-by, mas não era preciso convidar todos os amigos para gostarem de uma página vazia ad eternum. Este tipo de projecto é conhecido também como empreendedorismo histérico ou projecção precoce.
3 O Smog, os quatro posts repetidos partilhados no facebook em menos de uma hora falam por si.
4 Outubro de 2009, foi a última vez que se ouviu falar deste projecto, mas na altura prometia muito. Talvez tenham entrado em falência, ou talvez nunca tenham ganho sequer dinheiro e fartaram-se da beleza do pro bono. Na melhor das hipóteses abandonaram o empreendedorismo português e hoje gerem uma escola de mergulho no Hawaii.
5 O Invólucro, consiste num projecto cuja imagem gráfica está lá apenas para convencer de que até pode ser algo positivo, o que inclui muitas vezes lançar versões temáticas da marca no Natal e no São Valentim. O branding epilético serve de distracção de todas as falhas intelectuais e estratégicas que possam haver, bem como a irrelevância da ideia. No fundo seria o equivalente ao Passos Coelho ter um curso design e decidir que cada medida de austeridade precisava de um logótipo.
6 O Tote Bagele está preparado e os seus planos são claros: os outros é que ainda não perceberam, o mundo  ainda não percebeu!, este projecto é a próxima grande revelação, saiu no P3 a semana passada e tudo, ao lado da crónica sobre como amar no inverno sem congelar o coraçãozinho, daqui para a frente é crescimento exponencial, e em dez anos ultrapassa o Amorim, mas à vontade.

Posto isto, a internet há-de ser sempre um lugar estranho onde um chihuahua taco holder existe ao lado de bloggers de moda e de notícias políticas. Não é um mar de informação, é uma ilha de lixo. No que diz respeito a novos projectos, sim, que se continuem a pensar e criar coisas novas, que se mantenha o entusiasmo, mas se for para se fazerem coisas que se façam a sério, deixemos as anunciações para o Gabriel.

imagem: Anunciação, Sandro Botticelli 1485

Comentários

  1. Ola,

    Relativamente ao mérito efectivo das acções, existe na “vida real” algo que é difícil de replicar no domínio virtual. Refiro-me ao “atestado de seriedade” que é naturalmente emanado pelo protagonista e também naturalmente absorvido pelos interlocutores e que, entre muitas coisas, permitem dizer se uma pessoa/acção é virtuosa apenas com um breve contacto.
    No senso comum fala-se em separar o trigo do joio. Estou a falar disso mesmo.
    No geral, as pessoas conseguem dizer se alguém (ou alguma coisa) é trigo ou joio nos primeiros cinco minutos de conversa. Existem formas de dar a volta à percepção, usando a mentira ou o logro, mas no geral é como eu disse.
    Já no domínio virtual… a coisa é muito diferente. A aparência inicial parece ser o gatilho de credibilidade… e por vezes usam-se “certificações” de qualidade e “prémios” de inovação e criatividade como argumentos para convencer os interlocutores que aquela pessoa/acção é trigo. Tentando substituir o velhinho e quase “inato” instinto humano de intuição por um “selo de qualidade”.
    A Internet é um mar de informação… Existem “ilhas de lixo”… Enfim… nesse mar existe lixo por todo o lado.
    Como em qualquer ecossistema poluído, os seres vivos ficam intoxicados. No caso da Internet, fica-se “infoxicado”, ou seja intoxicado com informação.
    Os ineternautas acabam por navegar, completamente infoxicados, através de um smog de desinformação, e acabam por acreditar, que qualquer que seja o rumo que tomem, será sempre o rumo correcto. E que os levará ao admirável mundo novo… Afinal, na Internet parece não haver joio… Tudo parece um “mar de rosas”…
    Onde a única culpa pelo insucesso dos empreendimentos parece ser a “falta de garra” dos empreendedores… E não as “idiotices” que se vêm por aí ou as desconjunturas e assincronias burocráticos que tornam qualquer empreendimento “difícil”…
    O joio cai no “esquecimento”!!!

    HugoRioCosta

  2. Sinceramente acho que há, certamente, uma noção “naive” do que é na realidade o empreendedorismo! Não consegui perceber a ligação que fazem entre esta atitude e a internet … Atenção a estas comparações assumidas! Não é correcto! Tal como disse no vosso post no Facebook, talvez não seja a altura certa para falar deste assunto. Deixemos os “empreendedores” apostarem nos seus projectos, nas suas ideias, no seu país! Ele próprio está a apostar nos empreendedores .… não vamos nós banalizar esta palavra … tão carregada de tanta coisa!
    Não vamos para já generalizar o que é trigo e joio … as ideias, os projectos que falem por si e se mostrem como um valor, ou não! É prematuro falar deste tema! Não seremos todos nós empreendedores no nosso dia a dia? Se não … deveríamos ser!
    Mais que escrever sobre empreendedorismo, a solução para os verdadeiros problemas da economia, da sociedade é agir, é ter atitude .… Não será o que estamos agora mesmo a fazer?

  3. Olá Daniel.

    Não quero responder ao teu comentário na totalidade, embora discorde de algumas coisas que dizes. No entanto, quero responder à forma como terminas o comentário.

    Mais que escrever sobre empreendedorismo, a solução para os verdadeiros problemas da economia, da sociedade é agir, é ter atitude….”

    É tão importante discutir como agir. Numa era “instantânea” o problema é precisamente a falta de troca de ideias entre as pessoas. Este é um assunto que me interessa particularmente, visto que acho que estamos a viver num tempo cheio de “dentinhos-de-leão” que não sabem, ou não querem, ter discussões críticas sobre nada. A discussão, o debate, a partilha de opinião é fundamental no empreendedorismo, na arte, no design, na arquitectura, na culinária, na agricultura. Se calhar o problema de muitos casos que, embora de forma abstracta, a Sofia fala neste artigo é nunca terem recebido uma crítica a dizer que aquilo é uma merda. Todos nós precisamos que, volta e meia, nos digam que as nossas ideias são uma merda. Às vezes são mesmo e partimos para outras melhores. Outras vezes não são e, como acreditamos nelas, seguimos avante e fazemos algo interessante. O importante é o momento de reflexão, em que se percebe realmente se algo vale a pena concretizar ou se é apenas um projecto efémero e inconsequente, mais um para a ilha de lixo.

    No geral concordo com o artigo, não na sua totalidade, mas também percebo a tua opinião. Apenas tenho uma irritação quando se fazem apelos à acção irreflectida. E, na verdade, quando dizes “Não será o que estamos agora mesmo a fazer?”, estás a criar um paradoxo. Sim, estamos a participar numa ideia criada de forma independente, com um espírito que, se quiseres (embora eu não fizesse), podes chamar de empreendedor e tudo mais… Mas se vires bem, na verdade o que estamos a fazer é a discutir. A discussão, a conversa, a troca de ideias torna-se ela própria numa acção. Não podemos esquecer a sua importância. Acredito que há muito a dizer sobre tudo e nunca haverá tempo para dizer tudo, mas podemos tentar dizer, e ouvir, o máximo.

    Um abraço :)