Zigurfest 2014 | Lamego podia ser a nossa casa

No ano passado, quando estivemos no TRC Zigurfest, o IP4 ainda não estava online. As entrevistas e a nossa experiência no festival deram forma a alguns dos primeiros artigos que publicámos. Assim, este ano, não podíamos deixar de lá voltar cheios de boas intenções. O Zigurfest acontece na altura certa do Verão, quando já se queimam os últimos cartuxos e se põem as últimas cruzinhas nas checklists da silly season. Depois, Lamego é uma cidade com um potencial enorme para a festa, seja ela qual for. Nesta edição quisemos olhar além do festival, não o esquecendo, mas antes contextualizando-o numa cidade que, por esta altura, é completamente imprevisível. Assumimos a nossa incapacidade de ser bons críticos musicais e decidimos não escrever tantos disparates infudamentados sobre música, apostando mais nos disparates fundamentados sobre rambóia. Resumindo, fomos à procura de uma história. Com a segurança do sucesso do festival, arriscámos tudo em experienciar Lamego tanto quanto nos fosse permitido, mergulhámos de cabeça nesta fantástica terra e estamos contentes por ter voltado sãos e salvos, e sim, com uma história para contar!

Na sexta-feira, dia 29, chegámos ao Teatro Ribeiro Conceição quando terminava o concerto de Tales and Melodies, o primeiro da noite. Tínhamos alguns minutos e o nosso olhar foi violentamente desviado para a avenida principal: em 2013 estava em obras, nada convidativa, mas agora estendia-se por baixo de arcos luminosos cuja saturação e cor só podem ser descritas como a decoração mais LGBT de todas as romarias. Percorremos o túnel luminoso como se seguíssemos a yellow brick road e lá ao fundo o Santuário dos Remédios fosse a cidade Esmeralda—melhor só mesmo se os Equations tivessem tocado neste palco puramente festivo, destinado, nessa noite, à Escola de Concertinas de Lamego.

A estrada revelou-se longa, porque, depois de passarmos pelas dezenas de tendas de produtos regionais/artesanato/12 porta-chaves a 5€, o caminho continuava sinuoso através das habituais bancas de camisolas de Portugal, cuecas, tupperwares, barro, cassetes, brinquedos, mas também de janelas, motosserras, corta-relvas e outros tantos artigos deslocados que nos fazem desconfiar que Lamego é um triângulo das Bermudas do comércio itinerante. Durante o percurso reparámos também que as pessoas que vinham em sentido contrário ostentavam uma felicidade intrigante que nos levava a querer saber onde ia dar afinal esta estrada de tijolos amarelos—alguns sofridos metros depois as dúvidas dissiparam-se ao som de remixes de Rihanna, das familiares buzinas psicadélicas e da voz super auto-tunada que intimidava à compra de mais fichas. Estávamos no paraíso dos carrinhos de choque, no reino do canguru do amor e ao lado do maior ajuntamento de mesas de matraquilhos no norte do país.

Em vez de nos aventurarmos em qualquer uma destas ofertas, simplesmente fizemos um safari pela felicidade alheia, que deu sentido à subida e ânimo ao regresso pelo mesmo caminho, agora em modo arrumação da romaria. Na descida, ao passar por uma roullote de tiro ao alvo, fomos ainda presenteados com um carismático karaoke da música Ciganita, cujo autor desconhecemos. Esta actuação foi o deleite das senhoras da banca de farturas em frente e o pesadelo do cliente que tentava acertar o último tiro da pressão de ar.

De volta à realidade, já na Rua da Olaria, recuperámos ao som dos Serrabulho, que trocaram a indumentária rural de tempos passados pelo look Tupac Shakur. A festa, essa, foi servida nas doses habituais de distorção epicurista. Estávamos a precisar!

Lamego LGBT.

O primeiro dia foi tão bom que o seguinte teve de começar mais cedo. Eram seis da tarde quando chegámos a Lamego e aquele calor denso que tão bem conhecemos continuava-se a fazer sentir. A falta de sinalização na Zona Industrial de Vila Real, que fazia desaparecer misteriosamente a saída para a A24 a cada nova rotunda, causava os seus estrago. Perdemos o concerto de Ratere, o que foi ainda pior porque a primeira coisa que ouvimos em Lamego foi uma descrição do quão bom tinha sido. Assistimos a parte do concerto seguinte e provámos os primeiros finos. Estavam frescos. Decidimos então dar uma volta e conhecer finalmente o tão aclamado Trebaruna, onde nos sentámos na esplanada a beber soft drinks e a ouvir heavy metal. Voltámos à Rua da Olaria para ouvir os últimos acordes antes de partirmos em busca de um lugar que nos enchesse o estômago e nos saciasse a sede de uma boa história. Não fazíamos ideia do que nos esperava.

Percorremos as ruas menos atractivas de Lamego, as traseiras de prédios sujos, os becos mais desaconselháveis, resistimos a pizzarias, rodízios e bares gurmê, fizemos as subidas mais duras para quem estava esfomeado, até sermos recompensados com um outro cenário bom demais para ser verdade. Era a XXIII Concentração Motard à Romaria. Se na noite anterior tínhamos sido recebidos pelo arco-íris da Senhora dos Remédios ao som das concertinas, agora entrávamos num território predominantemente decorado a cabedal e ganga usada, ao som de covers de Led Zeppelin.

Muitos estarão a pensar que a nossa noite chegava o seu ponto alto: motas, Led Zeppelin, cerveja e a promessa de striptease. E até poderia ter sido, caso a fome não imperasse e nos obrigasse a seguir caminho. Mas não há aqui nenhum arrependimento, pois, movidos pela necessidade vital de nos alimentarmos, encontrámos o reduto de tudo o que é belo em Lamego. Num beco escondido, completamente fora de roteiro, um sinal discreto apresentava as palavras “Casa Nuno”, sugestão intrigante que nos fez tomar este desvio. Enquanto nos aproximávamos, e percebíamos a complexidade heterogénea da clientela animada, fomos ficando mais confiantes de que ali estava a nossa história.

Na televisão, o estado mais provável à saída da Casa Nuno.

A Casa Nuno é uma tasca, mas tem um piso superior mais family-friendly, apto a receber baptizados, casamentos e outro tipo de cerimónias ou esquisitices. Obviamente, optámos pelo rés-do-chão, onde se fala alto e come de camisa aberta, mas sobretudo onde temos a cozinha mesmo ao lado, reduzindo drasticamente os tempos de espera por mais uma caneca de tinto. A escolha recaiu sobre dose e meia de lombo assado, que rapidamente nos foi servida, para gáudio geral dos sentidos. Enquanto batalhávamos com uma quantidade de comida claramente inflaccionada, o ambiente foi-se tornando mais intenso conforme os habituais da Casa Nuno começavam a ignorar a nossa estranha presença. Não tardou a chegada das mais variadas personalidades de culto, como o Conan de Lamego, a pessoa mais Miami Vice daquele beco sem nome, ou o grupo de festeiros sexagenários que protagonizou uma discussão acesa com uma máquina de tabaco pouco dada a colaborar com notas de 50 euros.

O Ilídio veio-nos ajudar a encontrar uma história e a deitar abaixo o lombo assado da Casa Nuno.

Oh, caseirinho!

Depois de uma sobremesa caseira do mais alto calibre, dedicámo-nos finalmente a conhecer os boémios da Casa Nuno. Nuno, o original, contou-nos a história do estabelecimento, mas foi interrompido pela mais improvável das vozes: a de um surdo-mudo. Neste momento estávamos a conhecer Acácio (só viríamos a descobrir o nome mais tarde), casa-piano até aos 18 anos, estrela na baliza do futebol amador de Lamego e agora nos seus 64 anos, uma das pessoas mais simpáticas que tivemos o prazer de conhecer. A comunicação não era fácil, como devem imaginar, mas Acácio fala uma linguagem gestual universal, fundamentada em cerca de uma dúzia de gestos, a maior parte referente às coisas boas da vida. Em casos de extrema necessidade, recorria-se a uma caneta e um bilhete de totobola, ou à tradução feita pelos amigos, claramente mais experientes no assunto do que nós. E foi através do Acácio que ficámos a conhecer toda a gente. Cantores de fado e cantores de pimba, motoqueiros, agricultores e muitos reformados, até um ex-jogador de futebol recrutado por Pedroto e que nesse mesmo dia se tinha encontrado com o velho amigo Chalana—não nos deixou duvidar disto e mostrou-nos a foto que confirmava o facto. A conversa com o Acácio ultrapassou as três horas, terminando no momento em que fomos convidados a abandonar o tasco—no dia a seguir era dia de trabalho e alguém ia ter que lavar todas aquelas canecas. Seguimos o movimento popular daquele beco e acabámos poucos metros em baixo, no bar O Pote.

Intervalo para ver as “tochas” passar.

O Sr. Acácio a perder todo o respeito pelo IP4 quando percebeu que também tiramos selfies.

Na Casa Nuno não há mentirosos!

Levámos connosco o Sr. Magalhães, que viciou as promoções, conseguindo quatro chapéus por quatro finos, e, entre a mesa de bilhar e a porta de correr que dava para o pátio, ficámos a ouvir um trio de guitarra, voz e percussão que tocava covers desde David Guetta a Jeff Buckley. A média de idades tinha descido, no mínimo, 40 anos. O que era de notar neste lugar (e em muitos espaços de Lamego) era a adesão das pessoas. Havia pessoas em todo o lado, e não só de Lamego, mas também de Vila Real, da Régua e provavelmente de outras cidades durienses que não viemos a saber. Havia pessoas no bar O Pote e havia pessoas na rua, dali até à Olaria. Era inevitável pensar que a vida nocturna lamecense arrumava com a vila-realense para canto, pelo movimento e pela variedade. Ou então era só neste fim-de-semana, em que num momento nos encontrávamos em Lloret del Mar, no seguinte debaixo de um insuflável Super Bock mergulhados em electrónica, no seguinte no rock colorido do Zigurfest e no seguinte no Trebaruna, entre t-shirts negras e coletes forrados com emblemas e a jogar beer pong.

A Sofia e o Sr. Magalhães em Lloret.

Mas não avancemos tanto, porque nesta altura da noite ainda estávamos a tentar perceber como se chamava a banda de covers que passava de Coldplay para Tiago Bettencourt. Só depois disso, e de distribuirmos flyers amarelos para a nossa festa de aniversário, provavelmente fomentando em Lamego um ódio de estimação pelo IP4, e de descermos até ao início da Olaria, passando pelo ajuntamento techno que entupia a rua, é que voltámos ao Zigurfest—quase no exacto momento em que começava o concerto de Niagara, o último da noite e do festival. Detroit desceu à Olaria via Príncipe Discos e foi um deleite abanar a anca com vista previligiada sobre a maquinaria analógica que o trio em palco manipulava. E foi assim até acabar, até àquele momento da noite em que as vozes se sobrepõem à música pela última vez e a seguir não há mais nada. Em negação completa, continuámos a deambular por Lamego, ajudando à causa de esvaziar os barris de cerveja primeiro do Old Rock, depois do Trebaruna e por fim numa qualquer barraca na avenida principal, onde acabámos a comer a pior bifana de sempre. Tudo isto aconteceu ao longo de várias horas, ou pelo menos deduzimos isso pelo facto de termos feito o caminho de regresso com o sol a nascer. Voltámos a casa com o coração cheio, felizes por o Zigurfest nos trazer a Lamego, nem que seja uma vez por ano. E já que estamos nisto, esperamos mesmo que para o ano haja mais!