Entrevista | Capicua

Capicua, (também ela uma Ana Fernandes), espera lançar o seu novo álbum em Fevereiro ou Março do próximo ano — vamos ver. O novo projecto da rapper portuense terá dois CD’s, um com músicas originais em formato hip hop “normal”, outro com músicas suas já conhecidas em formato acústico. Segundo me explicou, trata-se de uma forma de registar as experiências musicais que brotaram da parceria com Isaac e com Theyre Heading West. Um presente a todos os fãs que se derreteram a ouvir Casa do Campo, por exemplo, naquele óptimo videoclip do Youtube, e queriam um registo definitivo e com qualidade. Já agora, o Luas também ficou fenomenal. Queria saber mais acerca do álbum, como o nome, mas na altura em que falei com Capicua ainda era cedo para tal. Na minha incursão pela sua página do facebook pude saber, entretanto, que terá a ver com sereias. De Capicua para Capicua, ora leiam a seguinte entrevista.

Foto: Ana Limão (nervos.pt)

Foto: Ana Limão (nervos.pt)

Curioso que, quando te vi pela primeira vez, foi no programa Toca e Foge, do canal Q. Nesse programa interpretaste as músicas do álbum Capicua num formato acústico. Sei que o teu novo álbum deve estar aí a arrebentar e assume, precisamente, uma ambiência acústica e mais intimista. Gostaste dessa experiência, da intimidade que uma guitarra acústica transfere às músicas?
Sim, gostei. Comecei a fazer essas experiências devido aos convites de programas como o Toca e Foge e projectos como o Música Portuguesa a Gostar dela Própria, por exemplo. Foram-me convidando para esses programas, para algumas rubricas em vídeo, sites, e pediam-me para tocar umas músicas em formato acústico. Fui fazendo essas experiências e, à medida que fui trabalhando com o Isaac na transformação das músicas, fui ficando muito entusiasmada. Depois, fui convidada pelos Theyre Heading West [Minta, João Correia, Marina Ricardo e Sérgio Nascimento], que têm uma residência de concertos na Casa independente, em Lisboa. Todos os meses convidam uma banda diferente para dividir o palco com eles e, a certa altura, convidaram-me. Tocaram músicas minhas também em versão acústica, portanto, quando tinha seis temas nesse formato, achei que seria giro gravá-los em álbum. Tinha vontade de ter um registo dessas experiências feito em estúdio, com qualidade, porque muita gente me pedia essas músicas — principalmente a Casa no Campo. A verdade é que só existiam aqueles vídeos no youtube. O meu disco novo vai ter dois CD’s. O primeiro tem músicas novas com beats, ou seja, num formato hip hop normal. O segundo, que agrupa essas experiências com o Isaac e os They’re Heading West, serve para registo e para dar às pessoas que tanto me pediram essas versões acústicas. Foi o entusiasmo de ter gostado muito do projecto, de me terem pedido muito as músicas e, também, o gosto de guardar estas coisas para o futuro, que me fez gravá-las em estúdio. Era a melhor forma de guardar tudo para sempre.

Podes dizer quando o álbum irá sair?
O lançamento ainda não tem data definida. Deve sair em Fevereiro ou Março do próximo ano.

E quanto ao nome?
Ainda é surpresa! Direi em breve como se irá chamar mas, para já, ainda é surpresa.

Quem conhece o teu trabalho está familiarizado com o ímpeto que uma egotrip tem, ou seja, uma autovalorização pessoal expressa nas letras. No entanto, é apenas a minha opinião, também há momentos em que deixas mostrar as tuas fragilidades. É um contraponto interessante.
Claro que o rap tem sempre uma dimensão competitiva e, como tu dizes, nós fazemos muitas músicas em formato egotrip. Reflecte esse espírito competitivo e, às vezes, até cómico que o rap tem. Serve para desafiar os nossos companheiros e os nossos pares para fazerem melhor. Isso faz parte do rap como, também, de outras vertentes do hip hop. Há sempre batalhas e competições. Essas músicas em que nos  apresentamos nesse registo mais aguerrido e, sobretudo, mais cómico, são normais. Gosto porque acho que são muito divertidas de se fazerem, tal como a Feias, Porcas e Más ou a Maria Capaz: é divertido escrever aquilo. Claro que vou continuar a fazer isso porque é das coisas que mais me diverte. Agora, acho que o rap tem essa coisa muito bonita de poder servir qualquer tema, de podermos falar de qualquer coisa desde sapatilhas e passarinhos, a amor e política — qualquer coisa. Gosto muito de escrever e aprecio a liberdade que o rap me dá. Vou sempre escrevendo, portanto, sobre temas muito diversos. Entre eles, é óbvio que falo da minha vida, de experiências mais emocionais e sobre coisas que têm mais a ver com o foro das emoções. Quando faço isso, é lógico que me vou expondo mais porque acaba por ser um exercício de catarse, de eu própria ir digerindo as minhas próprias angústias e de falar daquilo que me preocupa. É lógico que falo do que é normal, na nossa vida, deixar-nos mais tristes ou, pelo contrário, mais apaixonados. Gosto muito de cobrir um espectro alargado e variado de temas porque, além de me desafiar como MC, também se torna interessante para quem me ouve não estar sempre a ouvir a mesma coisa. É normal, como gosto de explorar vários temas, que também goste de explorar diversos estados de espírito. Não tenho nenhum problema em expor as minhas fragilidades, até as coisas que me fazem mais triste ou que me expõem mais. Claro que tenho a noção de que me estou a expor — são coisas autobiográficas. Por vezes, não são tão autobiográficas assim, mas relacionam-se com o que vou observando nas pessoas à minha volta. Essa exposição acaba por ser consciente, no sentido em que acho que já tenho uma certa maturidade — até pela minha idade — para falar dessas coisas e ter a noção dos limites que quero e não quero ultrapassar.

Surpreendeu-te o facto da mixtape Capicua Goes West estar no quarto lugar da lista dos melhores discos nacionais da Blitz?
Claro! Surpreendeu-me muito porque o facto do disco Capicua ter já ficado em segundo, no ano passado, foi para mim inesperado. Esta notícia foi mais uma surpresa. As pessoas podem não acreditar nisto mas quando preparo um disco estou de tal forma concentrada no que estou a fazer que não penso, “será que vão gostar, será que não vão gostar”, nem nas críticas. Só quando o acabo é que me ocorre, “espera lá, alguém vai ouvir isto. Será que as pessoas vão gostar?” Só aí é que começo a pensar nessa parte. Mas nunca me tinha ocorrido um dia estar nesse tipo de listas, até porque dentro do circuito hip hop mais underground estamos muito longe desse tipo de avaliações. Este ano, não estava mesmo à espera porque aquilo foi uma mixtape de cinco músicas que pus na internet. Nem sequer eram originais, os beats eram do Kanye West. Foi assim muito informal. Uma edição que gostei muito de fazer e teve um bom feedback, (esforcei-me muito para ficar bem feito), mas uma mixtape é uma mixtape. É muito mais informal do que um disco em formato físico, que sai nas lojas e com uma promoção mais profissional. Nesta mixtape não aconteceu isso, apesar de ter conseguido chegar às pessoas de uma forma que me surpreendeu, porque senti o feedback muito positivo. Agora, não estava à espera de sair naquela lista e é claro que fiquei muito contente. É sempre bom ter o reconhecimento da crítica e dos jornalistas de música e, portanto, foi fixe.

Focaste o hip hop underground. Porque é que achas que é difícil para os MC’s e artistas de rap e hip hop terem mais projecção?
O hip hop é, de facto, um circuito alternativo. Isso é bom, porque temos um circuito próprio de concertos, de edições e de sites. Os artistas têm um espírito do it yourself e organizam os próprios concertos. Nós somos independentes nesse sentido: temos um circuito próprio muito activo, muitos fãs e, nessa óptica, é bom ter um underground vasto e fazer música alternativa. Isto porque somos mais independentes e temos um público que vai para além dos circuitos comerciais mainstream. Mas, muitas vezes, há artistas que merecem chegar a um público mais alargado pela qualidade que têm e, de facto, deparam-se com muitas dificuldades em promover a sua música no circuito dominante. Devido ao preconceito que ainda existe contra o rap e, apesar de termos muito público, continuamos a ter muitas dificuldades na profissionalização: esse é que é o principal problema. Enquanto esses MC’s e músicos estiverem no circuito underground, não vão conseguir ter as condições para se profissionalizarem. O que é que eu quero dizer com profissionalizar? Ter dinheiro para se gravar num estúdio com mais qualidade e trabalhar com músicos, uma banda. Torna-se difícil se não houver dinheiro para isso. A profissionalização significa, também, tocar em festivais, auditórios, salas com qualidade e estar em circuitos em que os cachês são melhores. Isso é importante, até para nós próprios investirmos na nossa música e para estarmos motivados. O problema do circuito underground, para além das coisas boas que tem, é que um bom artista acaba sempre por fazer música como um hobby. Temos de ter uma profissão para além do rap, o que significa muito pouco tempo para fazer música e pouco dinheiro para investir no nosso trabalho. Depois acontece uma coisa que é muito clara no hip hop português: os MC’s, a maior parte deles, fazem discos de muitos em muitos anos. Não fazem álbuns com muita regularidade porque falta-lhes tempo, dinheiro e disponibilidade. Isto porque estão permanentemente num circuito amador.

Achas que ainda há preconceito contra o rap e hip hop?
Acho que sim. Acho que a maior parte das bandas que conseguem visibilidade e os MC’s que conseguem chegar a um público mais alargado inserem-se, sempre, dentro da lógica de excepção. Do género, “este é bom porque é diferente.” Mesmo no meu caso, quando dou entrevistas e assim, é quase sempre na lógica do “ai, tão diferente”. Se calhar por ser mulher, a coisa insere-se muito dentro dessa lógica de excepção quando, na verdade, não quero ser nenhuma excepção. Tenho muito orgulho em ser do hip hop e acho que essa ideia estereotipada, preconceituosa e muito reduzida daquilo que são os rappers em Portugal, está muito longe da verdade. Os rappers portugueses são muito diversificados entre si. Tens todo o tipo de pessoas a fazer rap, estilos muito diferentes e em várias zonas do país. Portanto, acho que há um desconhecimento muito grande daquilo que é a realidade do hip hop em Portugal. Talvez a responsabilidade seja nossa também. Se calhar, enquanto cultura, estamos demasiado fechados — não sei. Acho que nos deveríamos juntar e fazer esse debate. Mas sim, acho que ainda há muito preconceito.

Comentários

  1. ” também se torna interessante para quem me houve não estar sempre a ouvir a mesma coisa.” enganaram-se, é ouve e não houve.