Entrevista | Isabel Nogueira

Há pouco focou Baudelaire. O seu livro inicia com a noção que faz da modernidade. Curioso que reitera o seu lado temporal, que se esgota no tempo, mas dá depois o outro lado da moeda a arte, a intemporalidade.

Creio que quando Baudelaire diz isso, se está a referir a determinadas características de uma obra de arte, seja pintura, escultura, poesia ou uma peça musical. Fala de uma componente, se quisermos, quase classicista que tem que ver com a qualidade, com o fundamento teórico e estético de um trabalho. Depois há a outra parte que está sempre em mutação, que pode ter que ver com o momento, com a moda e com o fugidio. Focando a Mona Lisa, por exemplo: quando apareceu foi absolutamente inovadora para a época, mas a forma como foi feita é absolutamente classicista. O próprio género é o Classicismo. Há uma série de componentes que são perenes, por isso é que se chamam clássicas ou classicistas. Há, depois, as componentes que são voláteis, que mudam um bocado como o vento, consoante os tempos e a moda. A moda chama-se moda porque está sempre em mutação. Baudelaire entende claramente isso, não explicando exactamente o que é, também não é importante, mas a ideia está lá. Quando avaliamos uma peça percebemos sempre que ela é tão boa ou se, daqui a cem anos, vai ser igualmente boa ou ainda melhor. Isso é uma questão interessante e que veio com a crítica.

O segredo para a intemporalidade pode estar, então, em ir-se contra o vigente de uma determinada época?

Exactamente, ou seja, toda a arte, no fundo tem de ser inovadora — é um pressuposto. Mas dentro dessa inovação tem de haver determinadas características que lhe dêem uma consistência. Acho que a palavra é essa, ou seja, uma perenidade que vai durar sempre, independentemente das modas. Penso que é a isso a que Baudelaire se refere: essa dupla combinação do arrojado do momento e, depois, aquela característica que daqui a uns anos vai continuar a ter sentido independentemente de já não ser moderno, de já não estar no momento. Algo que continue a fazer sentido e a ser uma obra da qualidade, digamos assim: um clássico que, em alguns casos, se pode transformar numa obra icónica.

Há, também, um pequeno texto dedicado ao filme Recordações da Casa Amarela, do César Monteiro, que foca dois conceitos que ainda hoje não deixaram de se chocar, principalmente no cinema português. O conceito de realismo/empatia, (o que nos é reconhecível), e a abstracção que pode ir ao encontro da ideia base do expressionismo.

Essa tese do Wilhelm Worringer é muito interessante. Li-a em inglês, o original é alemão e, de facto, é um texto muito interessante em que fala dessas questões, como referiu e muito bem. É uma tese que aplicamos — quer dizer — não a levamos à letra porque foi escrita em 1906 e editada em 1907, daí a necessidade de adaptá-la ao seu tempo, mas é muito interessante. Quando falamos em expressionismo falamos em abstracção, não é? Apesar de ser um movimento reconhecível (nós olhamos para lá e vemos qualquer coisa de reconhecível), não deixa de ser uma abstracção no sentido de haver uma separação em relação à apresentação do objecto: isto porque o objecto não é representado tal como ele é. Mas, no entanto, é mais fácil criar-se uma empatia, digamos assim, com o que nós conhecemos e, se quisermos, com o realismo. Aliás, Portugal é um caso crasso em que o naturalismo oitocentista, portanto século XIX, dura até praticamente meados do século XX, que é uma coisa absolutamente extraordinária. Nós temos o Malhoa no início do século XX, enfim, com o valor que têm naturalmente, (não é isso que está em causa), quando em França ou em Itália já tínhamos movimentos absolutamente abstractos e a fazer trabalhos completamente diferentes. A empatia liga com o mundo, o mundo que nós conhecemos. A abstracção remete para outros valores, para outro tipo de capacidade intuitiva e reflexiva —  no fundo é um pouco isso. É mais difícil porque é mental, separada da realidade. É um bocadinho destas duas coisas que compõem os filmes do César Monteiro. Temos coisas que empaticamente reconhecemos, como os azulejos azuis e brancos que nós vemos nas paredes lisboetas, por exemplo, como refiro no texto. Há outros factores que identificamos como fazendo parte do universo visual português, da cidade de Lisboa, neste caso, onde decorre a acção do filme. Depois, por outro lado, temos a cena final em que ele sai do alçapão [João de Deus], e só quem conhece o filme do Murnau [Nosferatu] percebe essa cena, caso contrário não percebe.

Achei interessante focar esse filme do César Monteiro. Não sei se já teve a oportunidade de ver o filme Jaime, do António Reis e Margarida Cordeiro.

Por acaso não. Esse filme do António Reis nunca vi, mas tinha vontade ver, é verdade.

Foca-se na vida de Jaime Fernandes, um doente mental que foi internado no Miguel Bombarda. O curioso é que só começou a pintar no hospital, tardiamente. Outro facto interessante é que o João César Monteiro entrevistou António Reis, a entrevista foi publicada na revista Cinéfilo, na altura em que o filme saiu. Ao que parece, adorou-o. Só digo isto porque pode haver alguns contrapontos, até pelo facto de João de Deus ter ido parar, também, ao hospital psiquiátrico. Poderá haver, por isso, algumas semelhanças, até na forma de abordar os planos no hospital. 

Tem sentido, de facto. Se pensarmos em outros artistas, como por exemplo o Van Gogh, que começou a pintar tarde. Morreu jovem, na casa dos trinta, mas quase toda a sua obra é feita na fase final da sua vida. Não começou a pintar muito, muito jovem, foi mais tarde e, portanto, acontece. Deve ter sido um momento qualquer, não digo de epifania, mas uma coisa semelhante que terá acontecido a Jaime em que, de facto, a produção se processa mais tarde, de forma quase atípica. Não deixa de ser interessante quando a consciência do mundo se expressa de uma outra forma. A consciência do mundo é importante para produzir a obra seja de que categoria for. Isso, de facto, é importante: temos de criar mundo, o universo. É perfeitamente possível que assim funcione.

Qual é a percepção que tem do cinema português?

De uma forma generalista, o cinema português trabalha relativamente bem a imagem mas tem alguns problemas ao nível da narrativa. Na maioria dos filmes que aparecem há mais dificuldade em contar uma história do que propriamente em mostrar imagens interessantes. O que me agrada especialmente em César Monteiro é a capacidade de mostrar imagens mas, também, uma capacidade de contar uma história. Gosto bastante, por exemplo, do trabalho do João Canijo, precisamente porque consegue aliar, também, as duas situações. As suas imagens, algumas até com um brilho muito saturado, enfim, dos filmes anteriores, são bastantes interessantes, a meu ver. É alguém que sabe, igualmente, contar muito bem uma história. Em relação a outros cineastas, nem sempre consigo encontrar simpatia com eles, mas essa é a questão do cinema europeu e do cinema americano. Pronto, há cinema bom e cinema mau. Tanto faz a nacionalidade não é? Pode haver é características em comum, mas relativamente ao cinema português a falha tem a ver com facto da história não ser muito trabalhada. Como exemplo posso dizer que temos filmes que davam excelentes curtas e péssimas longas.

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João César Monteiro, “Recordações da Casa Amarela” (1989)

Acha, então, que as  águas estão separadas entre o abstraccionismo ou o lado visual dos planos e o cuidado com as historias?

Acho que o cinema não é separável de uma série de questões. Quando o cinema apareceu, a instituição cinema era, como se sabe, um investimento de feira. Começou a ter credibilidade nomeadamente através dos Cahier e, portanto, da acção teórica e crítica de determinadas pessoas que começaram a pensar o cinema: não só a realizá-lo mas também a pensá-lo. Aonde quero chegar com isto? A crítica tem aqui um papel activo. A crítica não só do cinema mas das artes visuais, da dança e do teatro, entre outras vertentes da cultura, têm, se calhar, de repensar a sua maneira de estar e a sua capacidade de produzir discurso: isto porque uns são influenciados pelos outros, nada existe isoladamente. Nós precisamos de ter uma estrutura crítica realmente informada para também se permitir a produzir um discurso que afecte as artes — para que elas se sintam, também, afectadas. A culpa não é só do cinema, há aqui toda uma situação que, na minha opinião, tem de ser pensada. Temos, por um lado, os discursos académicos, (nesse âmbito acho que estou à vontade porque é, essencialmente, o que eu sou, uma académica), e depois o discurso do jornalismo cultural com muita pouca formação. Estou a falar do jornalismo cultural, não estou a falar do jornalismo económico ou jornalismo político, estou a falar do jornalismo cultural. O jornalismo cultural português tem pouca formação, tem pouca leitura e sabe pouco, pronto. Salva-se um ou outro caso, a excepção confirma a regra, naturalmente, mas há aqui uma situação que tem de ser vista.

Tendo em conta o que disse acerca do jornalismo cultural português, por curiosidade, lê ou segue alguém?

O que mais gosto de ler é ensaio. O que vejo nas críticas, não quero dizer que não apareçam discursos interessantes aqui e além, não é isso que quero dizer, mas regra geral é mais um comentário circunstancial que diz “aconteceu” e “foi assim”, do que propriamente uma análise crítica. Eu não percebo, por exemplo, como o Sei Lá teve duas páginas num jornal. Eu não percebo. Mas tem. Mesmo que seja para falar mal, não entendo isto. Como é que se gasta tempo, duas páginas. Que haja uma referência, tudo bem, não podemos ignorar que está a acontecer. Querem referir, acho que sim, é um filme que acontece. Mas duas páginas? Não entendo.

Isso foi, de certo, o aproveitamento da celeuma que o filme tem gerado.  O aproveitar da onda negativa que também gera publicidade e interesse. 

Pois, mas o jornalismo cultural tem de estar à frente, não pode ser um reflexo do que as pessoas querem ler. Isso é o jornalismo de mexericos, não é o jornalismo cultural. O jornalismo cultural é um canal fundamental e não pode sair da sua função porque é nesse sentido que ele existe, de levar as coisas às pessoas, de explicar às pessoas com carácter didáctico e inovador, e não ao contrário. Esta é uma questão que merece, de facto, ser pensada seriamente.

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O poema-colagem de Rui Pires Cabral

Há imensos nomes da modernidade portuguesa que já não são focados, apesar do seu livro ser uma porta aberta para algumas vozes esquecidas. Acha que a modernidade precisa de ser discutida outra vez? De certo isso se deve ao jornalismo cultural, mas também à escola que terá um papel de maior relevo.

O que lhe posso dizer é que em todos os programas que lecciono, nos diversos sítios onde dou aulas, essas pessoas são protagonistas. Eu trago sempre, portanto, até cá, as questões estéticas e artísticas. Sim, acho que é uma fragilidade da história cultural portuguesa. Acho que desde o 25 de Abril, ou seja, desde há quarenta anos, que não se fala muito para cá. Isto é, fala-se para cá em termos de jornalismo, justamente, e em termos de curadoria, por exemplo. Ora um dos critérios da crítica é a actualidade, é normal que o jornalismo, portanto, se ocupe dessas questões. Temos a curadoria que também trabalha a arte do momento, sobretudo, não deixando de lado os artistas emergentes e da contemporaneidade. Nas universidades, de facto, tal não acontece. Nos últimos anos isso tem vindo a modificar, ainda bem, mas tem sido muito devagarinho, porque mesmo nas últimas teses de doutoramento há muito poucas sobre a contemporaneidade. Isso é outra questão importante, já na parte que me toca tem sido uma batalha minha. Todos os meus programas são actuais, literalmente, e toda a produção teórica que faço neste livro é sempre vocacionada para a contemporaneidade, não esquecendo, voltando à questão do Baudelaire, o Clássico. Ora o Clássico é a raiz, a base, e tem de estabelecer a ponte com a modernidade e com a contemporaneidade. É precisamente aí que eu faço questão de trabalhar. O meu primeiro livro, resultante da minha tese de doutoramento chama-se, precisamente, Artes plásticas e crítica em Portugal nos anos 70 e 80, que era um território que estava esquecido. A arte portuguesa é trabalhada sob um ponto de vista estereográfico, e muito bem, mas até aos anos 60 — a partir daí não existia nada.

Para finalizar, a capa trata-se da montagem de uma fotografia sob outra imagem. Houve alguma razão especial para a escolha? 

Trata-se de um poema-colagem. O autor, o Rui Pires Cabral, que é essencialmente poeta mas também artista plástico, mistura determinados dizeres, inclusive até poemas, neste tipo de trabalhos. Daí chamar-lhe poema-colagem. Para mim foi instintivo, gosto muito do trabalho dele, daí a espontaneidade de ser ele o autor dessa montagem. Depois, foi só uma questão de escolher. Dentro do rol grande de imagens escolhi uma que me agradasse e, por motivos muito prosaicos, tinha de ser uma imagem que conseguisse comunicar e que fosse visualmente apelativa. Essas questões têm de ser pensadas porque estamos a produzir um trabalho para chegar às pessoas. Não é para ficar ali numa redoma, é bom que apele. Foi dentro desse âmbito que acabou por se processar a escolha da imagem.

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