Entrevista | Valete

Já é nome valioso no hip hop português, continuando, apesar disso, a manter-se fiel à sua identidade e origem. O concerto foi no dia 28 de Outubro na Caloirada aos Montes, nós estivemos lá e conversámos alguns minutos com o Valete sobre o cenário musical em Portugal, sobre o hip hop e sobre a actualidade.

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Um bocado à imagem do blues, que nasceu nos campos de algodão, também o hip hop nasce se calhar um bocado da falta de meios mas da necessidade de comunicar. Como é que acontece este fenómeno de o hip hop se comercializar tanto que se confunde aquilo que se devia fazer e aquilo que realmente se faz?
Valete: Acho que era um bocado inevitável, até porque é toda uma cultura e tem o rap como estilo musical, que é realmente muito atraente, principalmente para os jovens, porque é muito visceral, porque é muito honesto, é muito genuíno.  Então era natural e era previsível que os jovens se fossem identificar com o hip hop, não só os jovens segregados das comunidades nova iorquinas mas jovens de todo o mundo, que é o que tem acontecido, o hip hop realmente globalizou-se. E depois quando tu tens um produto cultural que se torna tão grande, tão global, é normal que a indústria capitalista queira absorver isso, acho que é normal.

Então pronto, tu tens um hip hop que está apoderado pela indústria capitalista, se calhar esse é o hip hop vítima do tom pejorativo que tu falaste aqui; é um hip hop que serve o que as massas querem, entendendo que estamos numa era muito rápida em que as pessoas têm alguma dificuldade em reflectir e em formar raciocínios, querem coisas muito instantâneas, esse hip hop tem servido essas massas. Depois tens um hip hop que, acho, ainda está ligado à essência, que nasce consciente, que tenta ser… Vem de uma necessidade só de comunicar, de mostrar às pessoas uma voz e um sentimento popular que no mainstream não se ouvia, mesmo em Portugal tu não ouves pessoas dos subúrbios de Lisboa a falar. Tu, vendo televisão portuguesa, não consegues perceber o que é que as pessoas na Damaia sentem, não estão na televisão, na rádio, não estão nos jornais. Todo o mainstream dos media é dominado ali por uma classe média, classe média alta, que é muito classista, estás a ver? Essa classe mais baixa, essa comunidade, não tem representação. E o hip hop, que hoje é uma coisa transversal, veio ocupar esse espaço.

Para toda uma indústria é a destruição. Para os músicos como eu, acho que é excelente;

Em determinada altura tiveste outras ocupações além do hip hop, é possível, actualmente, viver da música em Portugal?
Eu trabalhei em 2011, numa empresa de recursos hídricos, asfixiado num escritório, das 9 as 6 da noite. Graças a Deus, desde 2011 consigo viver só da música. O que eu fiz, e que eu aconselho aos músicos portugueses, foi tentar reduzir os meus gastos ao mínimo Se tu puderes ir viver para um T0, se tu puderes livrar-te de todo aquele ímpeto consumista e materialista, e se precisares dos teus 400 euros, 500, 600 para viver, tu depois se te dedicares a fundo à música, se a tua música for boa, se tiver qualidade, consegues viver da música em Portugal. Razoavelmente bem até.

Li numa entrevista tua que, às vezes, quando se faz alguma coisa em casa em vez de se dar às editoras e esperar que eles usem o lápis azul, lanças as coisas na net. É esse o caminho que os artistas deve seguir?
Acho que é o caminho, até porque hoje as editoras estão muito enfraquecidas. Vives na era digital, a era do mp3 e estas gerações mais novas já nem têm uma relação com o CD físico, têm uma relação com o mp3. A indústria musical não está a perceber bem como tirar proveito disso, está a ser muito difícil para eles. Há uma geração que cresceu com o entendimento de que a música é gratuita, percebes? Isto para toda uma indústria é a destruição. Para os músicos como eu, acho que é excelente; uso a internet como plataforma de promoção para depois vir a Vila Real actuar, estás a ver. Tem resultado.

Não acredito em nenhum tipo de recuperação, do que eles falam,(…) Acredito no colapso.

Provavelmente na mesma entrevista, li que estiveste na Holanda e lá funciona o capitalismo social. E funciona. Existe alguém ou alguma ideia que salve um país como o nosso?
Eu vou-te dizer uma coisa mesmo muito honesta, eu acho que estamos a viver uma fase tão delicada, no espectro mundial, tão delicada, que eu, não sendo um politólogo, não sendo um sociólogo, não sendo um cientista político, tenho medo de ser ligeiro a apresentar soluções para um momento como este. O que eu te posso dizer é não acredito em nenhum tipo de recuperação, do que eles falam, nenhum tipo de recuperação económica, nenhum tipo de recuperação que te consiga dar alguma da estabilidade social que já tiveste. Acredito no colapso. Acho que vai acontecer um colapso.

Há um fenómeno que eles têm falado muito pouco que é a questão do desemprego tecnológico, máquinas a tirar empregos às pessoas. Eu vi uma reportagem muito interessante de um homem daqui do Norte que tem uma fábrica de papel higiénico e de lenços de papel que ele factura 30 milhões de euros mensais e tem 17 trabalhadores, estás a ver, o resto são máquinas. O desemprego tecnológico é uma coisa que não se tem falado, é uma coisa que está muito associado a esta crise também e que daqui a 20, 30 anos vai ser dilacerante. Isto era um coisa que grandes pensadores já tinham dito há muito tempo, o desemprego tecnológico vai acabar com o sistema capitalista, vai acabar com o regime e com esta democracia como conhecemos. Então eu acredito no colapso e acredito que vamos ter de nos adaptar, se calhar voltar à simplicidade, à terra, à agricultura, à troca, percebes, se calhar até vivermos num estado primitivo, e se conseguirmos ter tecnologia para usar e para nos aproveitarmos dela, melhor, mas acredito muito que vamos ter níveis de desemprego absurdos, vamos ter um colapso social e económico, por isso não vejo uma solução para o regime que existe, temos de pensar numa coisa diferente.