Arquitectos Pioledo: Descentralização e ruptura

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Os Arquitectos Pioledo são um grupo de arquitectos surgidos no contexto do pós 25 de Abril, no início dos anos 80, que desenvolveram o seu trabalho em conjunto até cerca do ano de 2006, sediados na cidade de Vila Real. O palco da sua actuação foi maioritariamente a cidade e outras localidades pertencentes ao seu distrito, mas surgem também, pontualmente, intervenções noutros locais, como Ílhavo, Amarante, Bragança e Vouzela. Desta forma, constituíram-se actores desejados e insubstituíveis da renovação da arquitectura portuguesa tendo em conta a originalidade e especificidade no contexto temporal e local onde surgiram, descomprometida dos grupos de pressão dos grandes centros.

Os elementos constituintes dos Arquitectos Pioledo são: António Belém Lima (ESBAL, 1979), Ricardo Santelmo (ESBAP, 1980), Carlos Baptista (ESBAP, 1981), Graça Campolargo (ESBAP,1983), Albino Costa Teixeira (ESBAP,1983) e Carlos Santelmo (FAUTL, 1985). Os arquitectos que constituem este colectivo provêm de uma formação académica distinta, Lisboa e Porto que encerram linhas de processo e pensamento com ideologias opostas e, em certos pontos, antagónicas. Estes dois pólos formativos e difusores provocam-se e argumentam-se, e a síntese desse debate, dessa dicotomia, é espelhada na obra dos Arquitectos Pioledo, dado o léxico diversificado de formas e linguagens que cada escola utiliza, cuja aglutinação e manipulação gera algo de inesperado.

A sua originalidade prende-se também com o facto de que a metodologia de trabalho em equipa, o chamado espírito de atelier praticamente não se registava no contexto nacional da transição dos 70/80’s, pelo que se pode atribuir um certo grau de rebeldia nos Pioledo perante a noção de atelier-instituição, marcado por uma estrutura hierárquica, que não acontece neste grupo, pelo que é mais forte o sinal do conjunto. Deste modo, podemos considerar uma espécie de pioneiros, ou noutra perspectiva, herdeiros das metodologias projectuais advindas do processo SAAL [Serviço Ambulatório de Apoio Local], pois é possivel ler o que transita enquanto material comum — processos de trabalho, gosto, cultura arquitectónica.

É interessante pensar os Arquitectos Pioledo em função da escolha do lugar onde e para onde projectam, contrariando o êxodo que se verificava e aproximando o litoral do interior do país. Estimulados pela ideia de interferir num território em desenvolvimento e desmarcando-se do cenário mais expressivo da arquitectura, adicionam inúmeras peças à estrutura da cidade de Vila Real e a outros concelhos do interior transmontano (Santa Marta de Penaguião, Alijó, Sabrosa, entre outros). Esta opção é justificada por uma necessidade de retorno às origens, que pode não ser o núcleo da evolução, o bulício e o frenesim da cultura, mas que encerra em si um grande interesse potencial, nem que seja, logo à partida, a beleza idílica e quase mágica do lugar. Como analogia, a sensação de Jacinto quando regressa a Tormes no romance queirosiano A Cidade e as Serras. Contudo, não ambicionam propriamente constituir um movimento cultural além-marão, nem tão pouco o ensaio de qualquer fanatismo de associação com valores rurais e contemplativos, pastores e ninfas, cantares e danças. Pelo contrário, a sua obra remete antes para uma sensibilidade ao quotidiano com uma relação que procure não ferir a história do lugar.

Deste modo, a sua geometria sobrevoa um cenário de identidade própria e as suas obras absorvem as raízes do lugar, mas nem por isso se tornam uma contaminação, uma colagem de técnicas construtivas desajustadas, uma vez que o exercício dos Pioledo não se prende com uma suposta arquitectura local, nem tão pouco se aproxima de algum tradicionalismo formal. Ao invés, revela-se uma arquitectura adequada a quem a habita, integrada com a envolvente, ajustando-se às pertinências e razões do que lhe é próximo (apesar da introdução de vários andamentos, allegros e andantes que funcionam como uma turbulência e os resgatam do conceito de pastiche). Assim, os Pioledo projectam tendo em conta o âmago do lugar, e atendendo à cultura ou ao cliente, mas introduzem novos elementos, novas linguagens que reproduzem o tempo certo, e estas linguagens convivem, por vezes, com alguns mimetismos referentes à história. Ou seja, para além de um grande carácter narrativo, intemporal, existe também uma notável sensibilidade à experiência do quotidiano.

Relativamente às referências vigentes no debate arquitectónico dos anos 80 existe, no contexto do surgimento dos Pioledo, uma reacção crítica ao modo de arquitectura e concepção estética vigente nas décadas de 60–70, mas não uma negação das suas referências, que deverão ser apreendidas como background inerente à sua produção, pelo que a sua produção revela-se como uma laboratório de experiências do Estado da Arquitectura Portuguesa desde o contexto da nova democracia até ao início do novo século. O seu trabalho rompe com os preconceitos e estigmas do modernismo, surgindo como uma catarse sobre os parâmetros frios, as limitações e constrangimentos deste, no seguimento de uma linha que partira de Lisboa que recusa a austeridade e a ausência de décor, desobedecendo em diferentes gravidades, à ordem corbusiana. A própria concepção do logótipo do escritório aponta alguma ironia. Aparece o modulor a fazer o quatro, o que simboliza a independência intelectual dos seus protagonistas, e uma crítica à arquitectura moderna, sem a total negação de uma das suas principais figuras, Le Corbusier.

Consequentemente, reescrevem a tradição moderna com uma grande crítica, sobretudo nas décadas de 80 e 90, não procurando a desmontagem ou rejeição desta, mas excluindo alguma homogeneidade de princípios tidos por adquiridos e correntes, atendendo a uma maior sensibilidade aos valores formais, simbólicos, vernáculos, históricos da arquitectura, balançando entre a nostalgia e elementos tecnológicos que parecem ter viajado do futuro. Deste modo, por vezes, a apreensão total do objecto arquitectónico requer alguma cultura arquitectónica da parte do sujeito, pois para se conseguir ter uma leitura correcta é necessário conhecer os momentos fulcrais da História da Arquitectura.

Relativamente à produção, o atelier participa em projectos de índole diversificada, desde o desenho de grandes equipamentos públicos, ao tratamento de espaços interiores, desde o planeamento de pequenos fragmentos urbanos até um pequeno quiosque de remate de uma rua comercial, sem recurso obsessivo pela encomenda ideal, recusando o papel de arquitecto–herói, tratando-se a sua arquitectura de uma estratégia de diálogo com o real, ao invés do tão em voga gesto da avestruz (expressão utilizada por Jorge Figueira para designar a ânsia de alguns arquitectos pelos projectos de grande impacto, a nível de programa como também da sua localização).

O seu vasto repertório multiplica-se por todo o tipo de experiências, permitindo-nos falar de uma hibridez temporal e tipológica, própria de um período de ruptura, o pós-modernismo, onde pairava uma racionalidade desobstruída e libertária, e mãos dadas com uma atitude naive que visualiza o edifício como uma experiência objectual exposta a animismos e hipérboles. O resultado é surpreendente: uma fusão beligerante que põe em evidência as pequenas imagens que se pretendem criar, muitas vezes artificializadas com o objectivo de exalar um certo sentido de drama. Em obras diferentes e também num mesmo objecto, por vezes encontramos Poe, o romantismo das formas, a vibrante materialidade; por outras encontramos Malévich, a pureza das formas na sua expressão brutalista que descende do firmitas vitruviano. Lado a lado constroem uma expressão ficcional, como se se tratasse de um filme de Hollywood, based on a true story, onde a lógica do object-type e dos elementos arquétipos é manipulada com um grande à vontade. Por vezes encontramos uma peça inscritível numa serigrafia de Warhol dos setentas ou uma tira de banda desenhada da Marvel. Por outras, uma caixa branca sujeita a golpes, cortes, compressões, por uma força tortuosa e anti-clássica que procura exorcizar Le Corbusier.

Recusa-se, então, a telúrica peça moderna em anódino pano de vidro; procura-se o desvio do open space modernista, procurando para cada espaço um sem número de momentos narrativos, diferentes plasticidades, enfim, um fervilhar de atitudes justapostas que negam o less is more miesiano e a sua inércia. Este espaço que se procura criar vibra, transpira, pois qualquer sentido de ordem é adulterado, fragmentado, exposto a turbulências que procuram jamais o jogo puro dos volumes sob a luz; bem pelo contrário há uma necessidade de utilização de toda a parafernália da arquitectura, manipulada para adquirir um sentido anti-estático, para exigir algo de nós. Por vezes, encontramos organismos mutantes com um grafismo pop irrequieto que visam criar uma arquitectura literalmente falante, acompanhada de um certo empirismo kitsch e um espírito de horror ao vazio. Por outras, colagem de artifícios motivados pela História e os tempos que resultam em narrativas onde pairam geometrias-fetiche de outros períodos e onde não existe o moralismo de distinguir o novo e o antigo. Às vezes, encontramos ambiências que primam pela depuração, ascetismo, serenidade do desenho, revelando-se o objecto como modesto e sem roupagens excessivas, que nos permitem respirar fundo, apesar de pontuados aqui e ali, por elementos erráticos denunciadores de um certo styling que desperta uma metamorfose desconcertante, para que se afaste dos dogmas de ataraxia do moderno. Toda a sua obra tem uma elevada carga de assimetrias, bipolaridades. Somos expostos a diferentes temperaturas, diferentes sabores, díspares imagens que provocam uma sinestesia quase literária.

Para lá das fugas experimentadas, os Pioledo manifestam-se verdadeiros estrategas urbanos, pois desenham cenários que procuram beneficiar o universo da urbe vilarealense, interferindo com a sua paisagem, pois as áreas onde se encontra uma maior concentração de obras são sempre pontos privilegiados do ponto de vista das relações visuais e, maioritariamente, lugares-chave para o crescimento da cidade, apesar de também haver obras no centro, o que de certo modo denota uma certa versatilidade n’Os Pioledo de desenhar cenografias. O seu trabalho mostra-se ao serviço de uma cidade para a qual procuram constituir a capital das suas vidas, apesar de liberto de provincianismos e amarras regionalistas. Contudo, é prova de coragem profissional, persistência e imaginação criadora, colocada ao serviço da comunidade para lá do Marão.

Comentários

  1. In-Possivel repetir…

    1. Ana Carolina diz:

      In-possível!