Alerta Geral: a zine do som da frente

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A história de um nicho

No seguimento do artigo “90’s Barulhentos em Vila Real” que escrevi há uns meses atrás, o Pedro de Carvalho, aka Finas, falou comigo sobre uma outra zine musical que precedera ao jornal de parede SONAR. Assim, entrei em contacto com o Rui Santos, o criador dessa publicação, alguém que teve uma longa relação com a rádio e que por estes dias anda ocupado com o primeiro lançamento da sua editora A Ronda da Noite. Interessava-me compreender melhor o que era a cultura alternativa da Vila Real dos anos 90, perceber o que se passava numa altura em que o edifício da Câmara Municipal se chegou a apresentar com archotes acesos na entrada, uma intensa luz vermelha vibrante no seu interior, indivíduos vestidos de preto entrando e saindo sob um constante ruído abrasivo — lá dentro, tocavam os Huska. Sim, isto aconteceu, e é precisamente este carácter enigmático de certas histórias, que por aqui ganham a dimensão de pequenos mitos, que me intrigou. Mas não se deixe enganar quem, por estas descrições, imagina um paraíso transmontano do Rock n Roll. A cidade era a mesma, os problemas iguais. Esta é uma história de um nicho, e desmistificá-la, explicando-a ao mesmo tempo que a compreendo, é um registo que considero relevante. Perceber melhor o que os jovens de outrora, que ainda são jovens hoje, fizeram na cidade é importante para pensar no que se pode fazer agora. A ideia não é glorificar uma “cena” ou um grupo de pessoas, e é necessário enquadrar o nosso olhar crítico perante o distanciamento histórico que um espaço de cerca de 20 anos permite, sem no entanto ceder à condescendência que inferioriza tudo o que se passou para trás. Por isso mesmo só conto esta história porque ela me foi, e vai sendo, narrada pelos seus protagonistas, que melhor do que ninguém podem dar uma ideia fidedigna da época em causa.

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Paintbrush e químicos do Totobola

A Alerta Geral era uma pequena revista agrafada, de tamanho A5, impressa a jacto de tinta a preto e branco em papel de escritório. Teve apenas dois números publicados, entre Janeiro e Março de 1995, com uma tiragem de cerca de 50 exemplares cada e era distribuída na Louch Ness Club (loja de discos no C.C. Miracorgo), na Dom Texto (onde a revista era impressa) ou através de venda postal. O grafismo algo naif reflecte a revolução informática que por essa altura chegava à casa das pessoas, com ilustrações abstractas feitas no Paintbrush e alguns recursos pontuais a explorações livres da tipografia, da imagem e da metáfora visual. Estamos no universo DIY e convém referir que, à parte de algumas ajudas à produção, o trabalho era todo realizado por uma pessoa. O Rui conta-me que a ideia de criar esta publicação nasceu das inúmeras viagens ao Porto, onde contactava com todo um universo punk da auto-publicação. O Porto representava um importante ponto de “abastecimento” musical, sendo basicamente o único sítio onde se podia comprar discos. É preciso perceber que, apesar de esta época coincidir com o aparecimento da internet, este acontece apenas em locais muito específicos. O início dos anos 90 é ainda uma época em que se mandavam vir discos de Londres, enviando o dinheiro envolvido nos químicos do Totobola para não ser parado nos Correios (algo que já era habitual desde os anos 80). Com este contacto estabelecido no Porto surge a vontade de fazer algo em Vila Real, sobretudo como meio de divulgação. A questão, como noutros casos do género, já é conhecida: “porque não?”

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Música, mas não só

Se há pouco falava do grafismo naif, dificilmente posso dizer o mesmo sobre os conteúdos. A Alerta Geral surpreende com entrevistas (feitas por correspondência) a vários artistas internacionais como um Laurent Garnier em início de carreira ou os ingleses Chumbawamba, excelentes artigos de opinião e reflexões sobre tecnologia e outros assuntos não relacionados com música. Apesar de o trabalho ser quase todo feito pelo Rui, a Alerta Geral pretendia ser uma publicação à base de colaborações, no entanto revelava-se extremamente difícil aguentar essa estrutura. Por isso mesmo a revista acaba por ter apenas dois números, pela falta de colaboradores qualificados para escreverem sobre temas não-musicais. Por outro lado, não havia o interesse em manter uma zine 100% dedicada a música, pois era a variedade de temas que levava muita gente a dar um feedback positivo. Entre alguns dos artigos mais interessantes encontra-se uma entrevista aos Huska, a primeira em formato impresso que a banda deu, onde podemos ter uma perspectiva sobre o interior da banda de culto vilarrealense. Fora do espectro musical fala-se, por exemplo, das cegonhas ou da camada de ozono, denotando a consciência ambiental que crescia nesta altura e que assim era trazida à discussão. Mas outros artigos ganharam, com o passar do tempo, contornos mais curiosos e é impossível não ler com um sorriso na cara textos sobre o jogo de PC do Pedro Abrunhosa ou o maravilhoso futuro tecnológico prometido pelo MiniDisc. Acima de tudo, o critério editorial, chamemos-lhe assim, reflecte uma preocupação com a divulgação de nova música, de atitudes culturais e de abordagem a temas poucos discutidos num meio tão fechado. Era este o objectivo a que a Alerta Geral se propunha, de forma despretensiosa mas com a vontade de criar reacções nos seus leitores — muitos ou poucos, isso não era assim tão relevante.

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Desafio e militância

Essencial para a construção desta zine era a experiência na rádio que o Rui vinha a acumular há alguns anos. Entre vários programas da sua responsabilidade destaca-se o “Sombras da Noite”, que esteve no ar durante cerca de 16 anos, na Rádio Universidade Marão. Esta, como outras emissões da autoria do Rui e alguns amigos, nascia da mesma vontade de divulgar música e desafiar o público que está presente na Alerta Geral, uma atitude punk com uma “estética” própria. E desafiar queria dizer discos a rodar ao contrário ou misturas improváveis feitas ao vivo — não num sentido de avacalho mas antes de exploração, de procura de novas formas que muitas vezes resultavam em novidade tanto para os emissores como para os ouvintes. Este espírito de experimentação estava também patente em alguns projectos musicais do Rui, um dos quais ele afirma ter sido o primeiro de música electrónica em Vila Real, com o nome Umbrella. Faixas criadas em casa com recurso a emuladores dos sintetizadores e grooveboxes que definiram a música techno dos anos 90 e que iam sendo partilhadas entre amigos. Nisto tudo, a noite vilarrealense no final dos anos 80 tinha tido um papel preponderante, propiciando a circulação entre diferentes sítios, gerando convívio com pessoas diferentes mas que partilhavam uma vontade de fuga aquilo a que se poderia chamar de cultura dominante. Os DJ’s que na altura animavam as pistas eram bons e conheciam a boa música que se fazia a nível internacional, mas devido às pressões impostas pelos donos dos bares, e em ultima análise pelo público, não lhe reservavam muito tempo nas suas noites. Eventualmente, a partir de 1993/94, o panorama muda e estas pressões comerciais ganham outra dimensão, iniciando-se o ciclo das Ladies Nights e acabando com a circulação cultural e social descrita acima. Nessa altura, a alternativa era novamente o Porto, onde havia um contacto ao vivo com a matéria prima da música electrónica que assim era trazida para — e divulgada em — Vila Real, nomeadamente através da rádio. Mas para terminar voltemos atrás, ao final da década de 80, quando se organizavam festas, nas quais passava o chamado “som da frente”, em qualquer sítio da cidade que o permitisse. Estas eram festas de grande adesão, onde a entrada paga e consumo mínimo não impediam que a casa enchesse em noites apoteóticas, demonstrando a militância deste nicho sobre o qual temos estado a falar. Uma militância que, mais do que qualquer outra coisa, alimentava as formas de expressão de quem, numa cidade ainda tendencialmente isolada, procurava algo mais do que a hegemonia cultural que os montes encerravam e cujos ecos se foram fazendo sentir nos anos seguintes.