90’s barulhentos em Vila Real

sonar

Há uns meses atrás saía no JN a notícia da prisão de Victor Chelica, proeminente figura da velha guarda roqueira de Vila Real. Logo a seguir, na Vice, a Ana Fernandes falava com três outras figuras que conviveram com Chelica, tentando desenterrar um pouco do seu passado. A notícia caiu mal em Vila Real, não pela actividade ilegal que o antigo baterista dos Speed King levava a cabo, mas porque o seu nome havia sido injustiçado. Chelica é uma figura que reúne muito afecto à sua volta por parte daqueles que o conhecem. A sua fotografia num jornal nacional, junto a uma notícia que o rotulava como um criminoso, comprometia o nome de alguém que está, de forma incontornável,  associado ao Rock n’ Roll em Vila Real nas últimas décadas. Havia uma história por contar, uma história que não desculpa o crime que cometeu nem interfere com o funcionamento da justiça, mas que mostra o outro lado da moeda, um lado muito mais interessante e relevante do que aquele se divulga nas conversas de café. Mais rapidamente alguém sabe que o Chelica foi preso por passar droga a miúdos do que, por exemplo, por ser um dos apresentadores do programa Sons do Silêncio, na Rádio Universidade Marão, durante algum tempo no ano de 1992. É aqui que, de facto, começa o história deste artigo.

Quero falar de um certo jornalismo musical rebelde que existiu em tantas cidades por esse mundo fora, com alguns casos devidamente documentados, e que existiu também em Vila Real, com o característico toque transmontano. O parágrafo anterior serve para contextualizar este jornalismo, mostra onde e de quem é que ele nasce, e porque é tão esquecido e negligenciado. Vou falar de dois casos que, com todas as suas virtudes e defeitos, deviam ser casos de estudo de uma atitude irreverente que se perdeu nas malhas da globalização e que precisa de ser reencontrada nas malhas de uma banda Rock. São o já referido Sons do Silêncio e, sobretudo, o jornal S.O.N.A.R. O contexto dos anos 90, época da actividade de ambos os projectos, é importante para perceber o porquê do nascimento destes media alternativos. Num panorama em que o jornalismo musical era muito limitado, não apenas pelos meios disponíveis, mas também pelas ideia centralistas que o dominavam, esqueciam-se regiões inteiras de Portugal que se começavam a sentir marginalizadas. Se o Blitz não cobria o que se passava em Vila Real, houve quem tentasse dar uma resposta.


10 minutos de ouro FM

Resta pouco material do Sons do Silêncio, e é difícil obter informações sobre o programa, no entanto, dez preciosos minutos carregados no Youtube compilam alguns dos melhores momentos das emissões e permitem perceber a linha tomada. Quando ouvi pela primeira vez esta gravação, lembrei-me imediatamente do primeiro filme de Quentin Tarantino, o inacabado My Best Friend’s Birthday, que acompanha o frenesim das emissões da K Billy’s Super Sounds Of The Seventies, a estação de rádio que mais tarde pode ser ouvida em Reservoir Dogs. O programa terá nascido da proximidade entre Victor Chelica e Lucindo Taveira, na altura assistente de realização na R.U.M. Umas horas livres durante a semana abriram porta ao lançamento do “Sons do Silêncio”, que viria a ter apenas seis ou sete emissões semanais. A Chelica e Taveira juntava-se Miguel Dinis, e assim estava composto painel que comandava a emissão de um programa que se orgulhava da sua descontração em estúdio, bem como das suas origens transmontanas, mesmo que por vezes fossem verbalizadas algumas lamentações sobre a “terrinha”, um problema que ainda hoje o é. Mas apesar deste contra-senso, é fácil perceber a importância que este programa teve. Quando falei pela primeira vez com o Guilhermino Martins, que me apresentou o Sons do Silêncio, ele referiu que por todo o país há gente a citar o Chelica e os seus fenomenais soundbytes, do “Jota Fola” (Joey Tafolla) ao “deve ser difícil…” (vejam o vídeo para perceber). E se estas frases são recicladas por brincadeira, existe um lado sério, que é o delas serem lembradas, fora de Vila Real, vinte anos mais tarde. Voltando à descrição da gravação best of, afirma-se que o Sons do Silêncio terá feito escola para casos como a Sic Radical ou a Antena 3. Não tendo a certeza sobre isto, podemos estar seguros que quem ouvia o programa não lhe poderia ficar indiferente. O Pedro Gomes Marques, ex-vocalista dos Hüska Burra Mamô e uma ajuda preciosa para este artigo, fala-me precisamente deste impacto:

“Aquilo para o público vila-realense, pelo menos aquele com quem eu me dava, foi um fartote. Tive conhecimento do programa através do passa palavra e de algum «zum-zum» relativamente a atitudes menos ortodoxas que ocorriam em directo, tais como o Victor entrar em emissão com a sua harmónica e tocar por cima da música que estava a passar. Isto enquanto ia dizendo: «everyday and everynight I love the Blues!». Tenho pena de só ter conseguido gravar as duas últimas emissões, mas foi o suficiente para fazer um estrondoso sucesso sempre que saía de casa. Normalmente andava com a K7 que rolou em imensos sítios por onde um gajo passava: casas de universitários, bares e até na discoteca Ritmin. Ficava tudo incrédulo com aquilo!

E como o relato de um ouvinte do programa vale muito mais que o de um puto que 20 anos depois o descobre, deixo o Pedro contar como tudo acabou:

“Uma história caricata tem a ver com a forma como o programa terminou. Isto foi-me contado pelo próprio Lucindo Taveira (RIP). O Chelica levou uma rapaziada para estar no estúdio a assistir ao programa. O homem estava com o gás todo e começou a dizer que não queria interromper a emissão para entrarem as notícias em directo à hora certa, como era obrigatório (parceria com a RDP ou com a RR, não me recordo bem). «A malta está a curtir Rock e tal, a estas horas ninguém quer saber das notícias para nada, não vão entrar notícias nenhumas!». O Lucindo, como responsável pela rádio, tentou explicar-lhe que  havia um compromisso, que as notícias tinham que entrar, etc… O Chelas virou-se ao gajo, porrada no estúdio, um filme de todo o tamanho. O Miguel ficou do lado do Lucindo e o Chelica lá se foi embora com a rapaziada com que tinha chegado. As notícias acabaram por não entrar e mais ninguém falou durante toda a segunda hora do programa.”

Se pela semântica e descontração o Sons do Silêncio conquistava os seus ouvintes, não é de descuidar o que por lá realmente passava. A forma era um complemento ao conteúdo, e o programa era um importante agente de divulgação musical. Lado a lado, rodavam bandas da cidade e bandas internacionais, ouviam-se músicas que de outra forma não chegavam aos ouvintes, fazia-se a descrição do material utilizado pelos músicos, como a “nada de especial” caixa falante de Peter Frampton e faziam-se ligações em directo para o Ex Bar no Pioledo, onde se aproveitava a noite para ouvir Metallica…


Hüska Burra Mamô, uma das bandas mais emblemáticas da época

Neste ponto da história, os locais repetem-se. O Ex Bar da reportagem do Sons do Silêncio era um dos locais preferenciais para a distribuição do jornal S.O.N.A.R. Afixado anonimamente em sítios estratégicos, as duas páginas coladas na parede evoluiriam mais tarde para 4 páginas num formato portátil, distribuído em mão – isto porque as pessoas começavam a arrancar as folhas das paredes para guardarem a publicação. Por trás do jornal estava Pedro Botelho (aka Pe7er Panic), a quem mais tarde se juntou Pedro Carvalho, conhecido por Finas. Em conversa com o Panic, ele diz-me que poderão ter havido mais colaboradores, no entanto, já não se recorda. Fazia a composição gráfica em casa, onde também imprimia, até ter conseguido um patrocínio à impressão. Nos cinco números a que tive acesso, e que muito provavelmente constituem a totalidade das edições lançadas, perfila-se uma escrita simples e descomprometida, mas acidamente crítica, sagaz e destemida. Tão destemida que o Repórter X, o Panic, chegou a sentir na pele (literalmente) a fúria de leitores descontentes. Tudo se tratou de uma polémica com a gerência do bar Copos & Rezas, na altura envolvidos num imbróglio com os Fuckness, quando a um dos membros foi recusada uma bebida depois de um concerto no dito bar. Obviamente, e como devem imaginar, o S.O.N.A.R era o sítio perfeito para travar todas estas guerras.

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Editorial do primeiro número.

Muitas das bandas que o jornal seguia perderam-se com os anos, mas algumas sobreviveram na memória colectiva Rock da cidade, mantendo-se ainda em activo actualmente, com formações diferentes, ou tendo acabado há pouco tempo. É o caso dos Speed King, dos Fuckness ou dos Thanatos. O caso dos últimos é interessante, pois além de ser possível acompanhar a evolução da banda desde a sua denominação como Blind & Lost, é também visível uma gradual mudança de opinião dos repórteres face à sua música, que parecia ir conquistando o seu respeito. Às reportagens e artigos de agenda juntava-se o sector mais fascinante do S.O.N.A.R: a crítica. Directa e destrutiva, abordava temas que ainda hoje se discutem e para os quais algumas das ideias perfiladas neste jornal são ainda relevantes. Um artigo em especial, “Vergonha Académica — Ano II”, não pode ser considerado realmente actual, mas a sua preocupação pode. É a preocupação das condições dadas às bandas da cidade quando tocam na cidade. É um ataque de todo o tamanho a uma instituição “toda-poderosa” como a AAUTAD, de uma maneira que hoje, na era em que se pode dizer tudo na Internet, ninguém se arrisca a fazer. Não é, para mais, uma rebeldia sem causa, pois sai em defesa das bandas locais, do respeito que merecem e do lugar que se esforçam por conquistar mas que lhes era entregue como uma ilusão. Ao mesmo tempo, a atitude do S.O.N.A.R não era condescendente, e não demonstrava o provincianismo do “é nosso, é bom”. Curiosamente, na página anterior ao artigo referido, só há lugar para um texto, denominado “Bandas de Vila Real só fazem música para engatar gajas”. As conclusões, tirem-nas vocês.

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O verdadeiro inimigo público.

Os próprios editoriais mostravam a vontade de assumir este espaço como um espaço crítico, construtivo, quase que uma procura da identidade da cena (palavra usada de uma forma despretensiosa) de Vila Real, colmatando a enorme lacuna de discussão que existia no panorama musical. Este jornal abominava o silêncio e combateu-o da forma mais eficaz, com barulho. E se graficamente os jornais não são obras-primas, se a escrita não é antológica e a gramática nem sempre é respeitada, somos obrigados a ignorar tudo isto como os detalhes insignificantes que são perante o entendimento geral do S.O.N.A.R como agente provocador. De forma totalmente diferente, encontra o seu paralelo no Sons do Silêncio: prova que, por vezes, as coisas não têm de ser sobejamente aperfeiçoadas antes de acontecerem, nem os seus formatos têm de ser revistos aos olhos dos cânones conhecidos e aceites. Muito menos ainda quando o objectivo é colmatar as falhas desses cânones. Haverá quem se questione acerca do uso da palavra “jornalismo” quando me refiro a estes dois casos. Podia ter usado umas aspas ironizantes para me precaver das críticas, mas julgo que, apesar dos formatos precários e efémeros que ambos assumiram, existiu neles algo sério: a sua atitude. Esta atitude, tomada num contexto de vazio de opinião pública e publicada, justifica por si só o uso da palavra sem “aditivos”. Por vezes, o imediatismo e a vontade febril de fazer algo é o que mais se precisa. Fazer acontecer, no fundo, é o importante.

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O título diz tudo

É difícil perceber se há realmente aqui uma lição a aprender, ou uma moral a reter. São duas simples histórias motivadoras da vontade de criar, de assumir a rebeldia mais ou menos ingénua de falar alto perante uma plateia que não nos esperava ouvir. Passados vinte anos, o cenário é completamente diferente. Hoje toda a gente tem uma voz e uma audiência, todos somos mais críticos que nunca, ou pelo menos temos oportunidade de o ser. Se os gostos se globalizaram, a discussão também, mas parece ter-se perdido o ímpeto assertivo que os meios limitados deram aos criadores de media alternativos há vinte anos atrás. A falta desta radicalidade é o que nos torna mais “mansos”, é o que dá medo a meio mundo de ofender a outra metade. Os espaços de discussão actualmente são mais amplos, mais completos e até melhores. Aquilo que necessitam é do risco que se corria nos estúdios da RUM ou na casa do Panic, do experimentalismo da palavra como ferramenta. Mas não precisamos de ir tão longe para reter a importância destes dois casos de que falei. O meu objectivo ao escrever este texto é tão simples como mostrar que isto aconteceu, para que não se perca nas histórias porreiras que a malta conta de vez em quando. Arquivar o que começou e acabou no tempo certo e deixá-lo aqui registado para que possa ser redescoberto, noutro tempo igualmente certo. Acho que no fundo é mostrar que não faz parte do nosso código genético estar calado, e se não estávamos antes, não há razões para estarmos agora.

Quero agradecer ao Guilhermino Martins, ao Pedro Botelho e ao Pedro Gomes Marques pela grande ajuda que me deram, sem a qual não poderia ter escrito este artigo.

Comentários

  1. […] segui­mento do artigo “90’s Baru­lhen­tos em Vila Real” que escrevi há uns meses atrás, o Pedro de Car­va­lho, aka Finas, falou comigo sobre uma outra […]

  2. […] 90’s baru­lhen­tos em Vila Real — Gui­lherme Sousa O Gui­lherme inves­tiga o subs­tracto dos anos 90 em Vila Real, pas­sando pelo jor­nal de parede S.O.N.A.R. e o pro­grama de rádio Os Sons do Silên­cio, reco­lhendo tes­te­mu­nhos, his­tó­rias e ima­gens do jor­nal, incluindo a céle­bre cita­ção “Ban­das de Vila Real só fazem música para enga­tar gajas”. […]