As histórias de uma simples aldeia transmontana

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Os rafeiros, uns três ou quatro, circulam à minha frente esquálidos e famintos. A cor amarela do pêlo confunde-se com alguma vegetação seca e com os reflexos do sol que, logo pela manhã, já teima em tostar-nos a pele. Quero dar-lhes pão. Primeiro  hesitam  e afastam-se, são fugidios. Compreendo-os! Já não me conhecem e, tal como se diz, não se deve dar confiança a estranhos. Insisto e continuo a chamá-los. Lentamente, o mais corajoso, aproxima-se. Abocanha o pedaço de pão que lhe estendo e, como agradecimento, lambe-me a mão. Afasta-se. Como não deve ter mais nada para fazer, suponho, deita-se na berma do asfalto, de barriga para o ar, a aproveitar a lassidão que este sol provoca.  Olho em volta e reparo que a filha da  vizinha, que mora numa casa em frente à da minha avó, já regressou da Espanha. Varre o pátio em frente à porta de casa enquanto pequenas partículas de pó voam no ar. Repara em mim e cumprimenta-me com as palavras da praxe: “Ah, olá! Então, estás cá?  Estás mais bonita, precisas é de engordar mais um bocadinho senão ninguém te vê mulher” Até que vem a pergunta fatal, “Então, já arranjaste emprego?”. “Ainda não”, respondo, “isto não está fácil”. “Ah, vais ver que vais ter sorte. Olha, a tua mãe, anda por aí?” “Sim, sim, está dentro de casa, entre”.

Fico sentada nas escadas da entrada enquanto ouço a vizinha a queixar-se da mãe, já nos seus oitenta anos. “Ah, não sabe como me põe a vida num inferno. Nem sei se fiz bem em voltar.” “Mas tem de ter paciência, então, já sabe que os velhotes são assim”, responde a minha mãe. “Mas sabe lá as doenças que ela colecciona?!? Ainda me fala das doenças de há não sei quantos anos atrás. Se as fosse renovando, vá lá, mas são sempre as mesmas e nunca curam. Ela não me quer ir para o lar, mas só não vai por respeito ao meu pai, que já não está bom da cabeça. Depois como é que aquele homem, habituado a andar e a mexer nas coisas dele, ia-se-me aguentar fechado, dentro de quatro paredes? Ainda se os meus irmãos me ajudassem! Mas já avisei a minha mãe que não sou a criada dela. Não lhe faço o almoço nem o jantar. O comer vem da Santa Casa e é se quer.”

Enquanto conversavam, vejo que o tema da conversa, aquela senhora já na casa dos oitenta anos, vem para fora e senta-se numa cadeira. Fico impressionada com a atitude da senhora porque tem passado o último ano quase na cama. Os vizinhos, que habitavam mais três casas ao pé, já não conseguiam tolerar aquela situação porque passava o tempo a ligar-lhes para lhe fazerem um chá, uma sopinha ou uma torradinha. Ao que parece, os telefonemas acalmaram quando a filha a ameaçou que tinha de pagar a conta do telefone com a própria reforma. Chama-me com alegria nos olhos e lá vou dar-lhe um dedinho de conversa. A tarefa não é difícil. Basta perguntar-lhe “então, como é que se sente?”, que a senhora dá conta do resto. Quem está do outro lado basta só ouvir.

Após enumerar as suas mil e uma doenças, desde uma colite até ao inchaço óbvio das pernas cheias de varizes, conseguiu encontrar um encadeamento qualquer para começar a contar o início da sua vida. A mãe era criada na casa de uma fidalga rica, numa outra aldeia, mas tiveram de abandonar aquela povoação graças ao pai. Era o marido da sua tia, ou seja, o mais que tudo da irmã da sua mãe. Após o deslize, a mãe voltou a refazer a sua vida com outro homem, mas a filha não se dava muito bem com o padrasto. As histórias continuam. Ao que parece, o esposo da tal fidalga rica era um médico por quem as meninas suspiravam e inventavam doenças. Comportava-se de forma bastante educada e falava bem, para além de ser alto e bonito. Era culto e, sempre que podia, gostava de ir ao Porto para poder ver cinema e peças de teatro.   O contraste dos outros maridos que não se faziam rogados em apresentar a mão às respectivas mulheres. Quem naquele tempo não se derretia com pequenas aspirações casanovianas como esta: “A uma mulher não se bate nem com uma flor.”  Como a concorrência era muita e o médico até gostava das atenções das meninas,  a fidalga rica decide deixá-lo e o senhor doutor fica livre. Muitas foram as que quiseram agarrá-lo, mas um médico democrático não se pode dedicar a uma só paciente. Apesar dos muitos casos que teve e que perpetuaram até ao final da sua vida, não se voltou a casar nem a partilhar a casa com mais ninguém. Mas, como todos nós somos corrompidos pelos demoníacos remorsos, para se redimir ofereceu uma máquina de costura, (daquelas verdes da Oliva),a cada uma das suas paixões. “Bem jeito deu”, alegaram algumas.

Os relatos não findam aqui. O próximo concilia armas, religião e uma valente tareia.  Uma vez, segundo me conta esta velha, a mãe de um certo jovem volta a casar após enviuvar do marido que morreu no Brasil. Até aqui tudo bem, não fosse o filho odiar o padrasto. O que faz? Começa a vender cereal para comprar uma pistola e  pôr termo à vida do seu carrasco. O azar do rapaz é que era religioso e, mais uma vez para aliviar a consciência, revelou ao padre em acto de confissão que comprou uma arma e tencionava dar-lhe uso. O padre, alarmado, conta os intentos da sua ovelha negra à mãe. O que esta faz? Espera pelo filho, pacientemente, em casa. Quando o nosso cowboy aparece leva um enxerto de porrada tal que teve de fugir de casa. O orgulho, esse, é que ficou um tanto ao quanto ferido. O padrasto sobreviveu. O pequeno pistoleiro continuou religioso mas nunca mais se confessou na vida, nunca, nunca mais.

A conversa continuou. Para reafirmar a sua honradez, esta idosa contou histórias de outras meninas do seu tempo, mal comportadas, cujos pais tiveram de levá-las ao médico para confirmar a sua suposta virgindade. De pais que foram levados a tribunal porque queriam fugir aos seus deveres  de parentalidade; das festas da aldeia que tanto poderiam acabar numa grande bebedeira alegre ou aos tiros. A carrinha da Santa Casa chega, é hora do almoço. Agora sim, a conversa acaba.

A sua filha chega e a voz desta senhora fica, de repente, trémula. Surgem uns ais aqui e ali, “ ai as minhas cruzes”. Lá se levanta e vai almoçar. “Ai, tanto filho que criei para agora estar assim”. A sua descendente, assim que ouve isto, lança as mãos à cabeça em sinal de desespero, “onde me meti”.

Vou para casa, para o meu cantinho no quintal. Olho para a imensidão dos terrenos, das vinhas, dos olivais, dos montes. Que livros Cormac Mccarthy escreveria com as desavenças que esses mesmos terrenos causaram entre irmãos, primos e parentes de ultíssimo grau? Dou comigo, também,  a pensar na farra da última vindima em que um homem desafogava as suas lágrimas enquanto cantava “e às quatro da madrugada o passarinho cantou.” Na mulher mais velha da aldeia,  que conseguiu sobreviver estoicamente a três casamentos e enterrou os seus três maridos. Na última vez em que as anciãs se reuniram para fazer os folares e tiveram conversas que faziam corar  a mais moderna das meninas. É já de tarde e vejo as pessoas a saírem para rezar o terço. Entre as velhas quais seriam as Annas Kareninas? Entre os homens quais seriam os Billy The Kids do seu tempo, de arma na mão? Melhor, quais seriam os Casasnovas que sabiam como falar ao ouvido de uma mulher? Tudo aqui é história e tudo me cheira a literatura, mas há uma outra questão que me incomoda. Em que ponto é que as pessoas passam a ser pessoas e não, apenas, um reflexo do seu tempo? Para descobrir a resposta é fácil. Basta entrar pelo lado maldito das histórias. Só falta dizer que tudo isto se passou numa pequena aldeia transmontana, o meu próprio Texas pessoal. Vilarinho das Azenhas, do concelho de Vila Flor, mesmo à beirinha do rio Tua. Não há nada melhor do que acordar de manhã ao som do correr das águas de um rio. É algo que nunca mais se esquece, vá-se para onde se vá.