João Guimarães
fotografia arquivo IP4

Um passeio pelo Alvão

Um passeio pelo Alvão

O aconchego da noite esvazia-me a alma deste purgatório da realidade vã e dos longos momentos em que sobrevivo para sustentar a minha condição de ser humano. Enquanto caminho vagarosamente neste descampado imenso, por caminhos que não existem e que eu próprio vou traçando, respiro com uma enorme vontade como se o fizesse conscientemente pela primeira vez. Durante a noite as florestas revelam-nos mais do que os olhos nos podem dizer. Vazias de humanidade permitem-nos a sua contemplação de forma bela e primitiva. Caminho lentamente, apreciando cada mudança de perspectiva sem pensar muito nisso. Os sentidos despertam-me as coisas mais simples da existência e nesses momentos apenas aprecio o que me rodeia: vivo a terra molhada; sinto as folhas que caem das árvores e forram as plantas dos meus pés; respiro o ar imenso e invisível, como este deve ser, e que abraça tudo o que existe. Devoro a realidade sem a consumir. Às vezes deito-me junto das rochas e das raízes e deixo-me abraçar pela terra e pelo que nasce dela como se não existisse ontem e amanhã. Olho o céu e lembro-me das palavras do meu amigo Raul Brandão que nunca poderei conhecer:

“Toda a gente fala do céu, mas quantos passaram no mundo sem ter olhado o céu na sua profunda, temerosa realidade? O nome basta-nos para lidar com ele.”

Depois respiro fundo. Expiro e esse ar frio difunde-se no vazio aparente até desaparecer dos meus olhos e ser novamente invisível como deve ser. Se estas árvores pudessem falar… Entretanto durmo acordado, embalado nesta canção sem versos nem refrães: o vento e a sua ressonância pelas folhas, ramos e rios; as notas desordenadas e aconchegantes dos animais, entre eles os gritos roucos dos pássaros; e o leve silêncio que também é música…
Aqui não existe medo. O medo é uma concepção humana. Aqui não preciso de ser como os homens são, nem construir nada pois tudo é como deve ser. E sempre foi assim, antes de nascermos, depois de morrermos. O conforto destes lugares cada vez mais raros é a sua intemporalidade cíclica e o seu mistério, recantos imensos disponíveis para a nossa apreciação desde o início dos tempos.
Lentamente sinto o meu corpo molhado e frio pelas águas que caem pelas árvores depois de caírem do céu. Contudo sou leve e livre e nada pode quebrar isso. Respiro fundo. Expiro. Volto a respirar ainda mais fundo e sopro a minha gratidão.

Nesses momentos sou livre de todas as prisões onde me esvaio. Nessas horas sou cabal…
A fuga dessas prisões de ferro e cimento são fulcrais à sobrevivência pois lembra-nos o nosso espaço no cosmos. Reduz-nos à nossa pequenez que nos enche a alma. No dia em que não conseguir sentir este imenso da floresta expurgante, morri. Nesse dia continuarei a caminhar sem sentido, acordado e comatoso, e serei mais um recluso entre constantes prisões. Entretanto vivo e deixo viver…