Bissexualidade para Totós — Parte 2/2

Na primeira parte deste artigo abordei algumas das questões básicas acerca de orientação e bissexualidade. Deixei para último estas, mais complexas.

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A orientação dela não depende de tu estares convencido ou não. Ela não tem de te provar nada. Tanto não tem como não pode — como é que se convence outra pessoa de que se é gay, ou hetero ou bi?
Sou muito céptica a achar que alguém vá mentir acerca de não ser heterossexual para chamar a atenção. Sinceramente não vejo nenhuma vantagem: se estás numa situação em que as pessoas à tua volta são mais conservadoras, recebes atenção mas é negativa. Se por outro lado estás num ambiente mais seguro e inclusivo, a atenção que recebes é nula. Ninguém vem dar-te os parabéns por seres tão especial e alternativo. Isso não acontece.
De qualquer forma, mesmo que seja verdade, e que alguém diga que é bissexual só para parecer mais rebelde, não me parece a coisa mais dramática do mundo, antes isso que meter-se nas drogas.

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Estão a ver aquela música da Katy Perry “I Kissed a Girl and I Liked It”? Cantada por ela é só uma música atrevida sobre beijar uma rapariga qualquer. A letra assegura-nos a todos que BEIJEI UMA RAPARIGA, MAS SOU SUPER HETEROSSEXUAL,TÁ? E temos muita facilidade em acreditar nela e em aceitar que o momento gay da Katy Perry é só mais um acessório sexy para uma música pop.

Há uma parte em que ela até canta:
“Us girls we are so magical
Soft skin, red lips, so kissable
Hard to resist so touchable
Too good to deny it
Ain’t no big deal, it’s innocent

É o melhor exemplo que consigo pensar de algo que vejo acontecer muitas vezes em televisão, revistas, filmes… há uma insinuação de algo gay entre duas mulheres enquanto, ao mesmo tempo, se reforça que é inocente, que não é um big deal, que não é a sério.
Se esta música fosse adaptada para “I Kissed a Boy and Liked It” e cantada por um cantor hetero qualquer (porque não o Michael Bublé?) íamos todos ouvi-la de uma maneira diferente, não? Provavelmente íamos achar que o Bublé está um bocado confuso e que a esposa dele tem realmente razões para ficar preocupada.

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Em geral é mais fácil para uma mulher explorar a sua sexualidade e ter as suas aventuras com alguém do mesmo sexo sem que fique com LÉSBICA estampado no cadastro. Ainda que eu ache isso positivo, tenho a sensação que essa liberdade só existe porque homossexualidade feminina é muito facilmente descartada como uma “fase”, ou como uma coisa gira que se faz em festas para ter a atenção dos homens, mas que é completamente trivial.
Ora, se por um lado pode ser difícil para mulheres bissexuais serem levadas a sério nos seus relacionamentos com outras mulheres, no caso de homens bi acho que o problema é exactamente o oposto. Basta um mergulhinho na piscina homossexual para um homem ficar marcado como tal para sempre.

Como é possível que homossexualidade feminina seja tantas vezes reduzida a um aparato sexy que entretém um fetiche masculino de menáge a trois, e, no lado oposto, quando um homem tem alguma coisa com outro e não se identifica logo como gay é porque há alguma coisa de errada com ele?
Há sempre um bocado de homofobia por trás disto. Quando ouço afirmações como “Bissexualidade em raparigas é sexy, mas em rapazes é estranho” sinto que há um subtexto a reforçar que relações entre pessoas do mesmo sexo não são tão sérias, ou tão normais.
Às vezes, por muito que as pessoas sejam a favor da igualdade no casamento, e abanem bandeirinhas arco-íris por todos os seus amigos LGBT, laaaaá no fuuuundo, mesmo que não se apercebam ou admitam para si próprias, ainda acreditam que homossexualidade é algo menos bom e menos válido. E que, se é uma opção de vida inevitável para quem é estritamente gay, se fores bissexual, e se conseguires tirar satisfação de relações com pessoas do sexo oposto, devias ficar-te por essas.

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Todas temos direito aos nossos dealbreakers, e esse pode ser o teu. Não há nada de errado nisso, mas é uma oportunidade para pensares no que é que exactamente está no facto de um homem já ter tido relações com outros homens que o torna indesejável.
E, quantos homens bissexuais é que conheces? Estás a tirar essa conclusão baseada numa experiência real ou hipotética?  É que nestas situações eu proponho pensar no Wentworth Miller.

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Se ele amanhã dissesse à imprensa internacional que afinal era bissexual, voasse para Portugal e fosse bater à tua porta, com promessas de amor eterno e sexo maravilhoso, ias dar-lhe uma tampa?
Mesmo sabendo que ele já teve namorados? Eu acho que não.

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É mesmo difícil e injusto generalizar em relação a estas coisas e dizer que pessoas homossexuais sofrem mais preconceito do que bissexuais. Até porque existem vários factores que fazem com que uma pessoa seja vítima de preconceito por causa da sua orientação, além da orientação própriamente dita (por exemplo a identidade de género, etnia, religião, poder económico, posição social ou o local onde vive).
Vou supor que pensas isso porque, muitas vezes, bissexuais estão em relacionamentos com pessoas do sexo oposto e são vistos pela sociedade como sendo hetero, acabando por usufruir dos privilégios que vêm com isso.

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Mas ser percebido como heterossexual, não é ser heterossexual. E ver uma parte da tua realidade e identidade ser apagada em função de com quem estás a dividir a cama naquele determinado momento não é uma sensação muito feliz.
Seria interessante haver um estudo comparativo sobre discriminação sentida por homens e mulheres bissexuais e homossexuais, em Portugal, que eu pudesse citar agora. Mas não encontro nenhum tão específico. Podes, de qualquer forma, dar uma vista de olhos pelos resultados do inquérito que a Fundamental Rights Agency fez acerca de experiências de discriminação e crimes de ódio à comunidade LGBT na União Europeia. É fácil de consultar, e pelo que vi dos dados de Portugal pareceu-me que as diferenças entre a comunidade gay, lésbica e bissexual não são muito significativas, mas não me sinto capaz de fazer um conclusão séria e académica sobre isto.(1)
Aparte disso, também podemos falar de como ver bissexualidade representada na esfera pública é uma parte importante para que seja reconhecida como uma orientação sexual válida e como, no contexto português, ainda que a televisão e o entretenimento estejam muito lentamente a caminhar para retratos mais maduros de minorias sexuais, e que mais figuras públicas estejam a sair do armário, tenho dificuldade em lembrar-me de alguma celebridade portuguesa ou personagem de uma novela que seja bissexual.
A sério, não consigo pensar em ninguém.
Mas admito que é possível que isto seja falha minha e não estou suficientemente a par destas coisas. Se souberem de alguém escrevam-me nos comentários, fico-vos agradecida.

(1) De qualquer forma, encontrei alguns estudos referentes aos Estados Unidos que são de ter em conta, se quiserem ler mais sobre o assunto:
Neste relatório do San Francisco Human Rights Comission explicam como, apesar de ser a população mais vasta dentro da comunidade LGBT, a orientação ainda é posta em causa, e as suas necessidades especificas não são devidamente abordadas. O estudo mostra como isso tem consequências sérias na saúde e bem estar económico de indivíduos bissexuais assim como no financiamento de projectos e organizações.
Segundo estes dois estudos que dizem que: Mulheres bissexuais têm bastante mais probabilidade de serem vítimas de assédiode experienciar ansiedade e depressão por comparação a mulheres hetero e homossexuais.
Por último, este inquérito à comunidade LGBT norte-americana que demonstra que, enquanto 77% de homens gays e 71% de lésbicas afirmam que as pessoas mais importantes da sua vida sabem da sua orientação, apenas 28% dos bissexuais dizem o mesmo.