Descansem, o Grande Irmão diz-vos o que pensar e o que fazer

No meu nono ano, quando ainda andava na escola preparatória de Mirandela, a minha professora de Inglês fez o favor de  nos apresentar o livro 1984, do George Orwell. Na altura em que a saga dos reality shows já havia começado, disse à turma como quem contava um segredo, “agora já sabem a origem do nome Big Brother. Não se esqueçam do que, na realidade, o nome representa.” Ainda guardo o livro. Na verdade trata-se de uma fina adaptação, preparada pela Penguin Readers, própria para ser trabalhada nas aulas. Sei que na altura a atitude um pouco rebelde da minha professora, (a obra não fazia parte do programa), causou celeuma no conselho directivo. A verdade é que cansa e custa puxar pela inteligência dos mais novos. É tão mais fácil pensar-se assim, “pfff ensinar George Orwell a putos do nono ano. Ainda por cima em inglês!!! Onde é que ela tem a cabeça?” Nunca mais ninguém, nenhum docente ou entidade escolar, se disponibilizou para nos oferecer uma maior abrangência literária para além das mais do que óbvias. Não tenho pejo em dizer que, nesse âmbito, o  que sei fui-o desbravando sozinha, por mim mesma: com tudo o que isso tem de bom e de mau. Não foi na escola  que aprendi o nome Joseph Conrad ou Thomas Mann, por exemplo.

Não me espanta por isso, à luz do que vivi e do que me foi ensinado, que quem saia do décimo segundo ano ache que a literatura gire em torno de Camões, Saramago e Almeida Garrett. Não estou a desfazer destes autores, muito pelo contrário, apenas a dizer que há mais a nível nacional e internacional. Vou-vos até contar um segredo, shiuuu, “nem todos os escritores estão mortos, eles andam por aí”. É por isso que quem queira livrar-se das palas precisa de ser um autocrata, é verdade. Quem, a partir daí, tiver pernas para andar, anda, quem não tiver mais nada vê a vida a andar ao para trás. É o país que temos. A verdade é que depois de ultrapassar a meta dos 20 anos começo a ter sérias dúvidas sobre se a escola desempenha da melhor forma o seu papel na transmissão do gosto pelo conhecimento. Estou mais inclinada para achar que não, por vários motivos que dariam para uma outra discussão interminável.

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Nunca mais vi essa professora na minha vida, foi só nesse ano. Não era, sequer, da minha cidade. Se a voltasse a ver um só segundo que fosse desfar-me-ia, logo naquele momento, em mil e um agradecimentos porque, verdade seja dita, esse livro foi primordial para entender os alicerces da sociedade de hoje, (conotações políticas óbvias à parte). A mesma sociedade que considera entretenimento ver numa primeira página de uma revista social fotos de alguém que definha, quase às portas da morte. Isto como quem diz, “venham, venham ver a agonia deste homem”. Tal como alguém que anuncia uma raridade perto de um circo qualquer e ganha uns trocos com isso. Depois, quer-se ver o público que ambiciona sempre mais, fazer a tal exclamação oca do “ah, coitadinho, que mal  está”, ou “está mesmo com mau aspecto”. Há muitas questões que necessitam de uma resposta. Não sei se foi o próprio que autorizou isto, mas se sim, há que  ter cuidado quando já não se sabe viver sob o escrutínio público: como se precisássemos de uma validação constante do exterior para sermos reais, para existirmos. Porquê pormo-nos à mercê dos comentários ou opiniões de quem não conhecemos? Haverá algo que banalize mais o nosso conceito de morte?  Não venham falar, depois, da violência dos filmes do Tarantino. Isto é real, mexe connosco, com as nossas vidas. Para existirmos, para termos consciência de nós próprios e das nossas acções para quê mostrar tudo?

A este respeito a nossa imprensa ainda fica aquém da atitude agressiva dos órgãos de comunicação social ingleses e espanhóis, mas convenhamos que a cultura “The Truman Show” veio para ficar depois das edições sucessivas do Big Brother e Casa dos Segredos I, II, III, IV, V, VI, até ao infinito. Mesmo quando a Casa dos Segredos acabar, descansem porque vai surgir outro programa igual, apenas com um nome diferente. O que me incomoda mais nem é a suposta ignorância dos concorrentes, é pegarem nessa mesma ignorância, expô-la como uma raridade e pedirem-nos para apontarmos o dedo. Nós, como cordeirinhos, fazemo-lo, porque ver a ignorância espelhada na televisão faz rir e, ao que parece, é entretenimento. Mas o que me incomoda mesmo é ver estas produções escolherem a dedo um grupo de pessoas e controlarem todos os aspectos da suas vidas. O romance e o sexo vendem, é verdade, logo interessa às  produções  gerarem situações propícias ao romance e ao sexo sem se respeitar a vontade própria e o livre arbítrio: os concorrentes aceitam. Os  conflitos vendem, é verdade, logo interessa às produções gerarem situações propícias ao conflito: os concorrentes aceitam. Cá fora, nós não vemos a verdadeira imagem destas pessoas que, embora só apareçam na televisão, são reais e respiram oxigénio tal como nós. Vemos, sim, aquilo que estas produções querem. Se há interesse em que uma mulher pareça uma puta, pois bem, é assim que a sua imagem pública é gerida. Se há interesse em que alguém pareça um santo, pois bem, que assim seja. Por causa das supostas audiências achamos bem pegarmos nas vidas de um grupo de pessoas e geri-las a nosso bel prazer. Pois claro, é entretenimento, qual é o mal disso? Vende, não vende? Não vale apenas dizer, neste caso: “quem quiser ver que veja, quem não quiser ver que não veja.” Aceitava isso se as consequências não estivessem à vista.

A cultura do “tudo o que fazemos tem de ser visto” está expressa nas escolas quando vemos cenas de violência filmadas e publicadas no youtube. Quando a imagem é utilizada para denegrir o próximo e o cyberbulling não pára de aterrorizar as vítimas 24 sob 24 horas. Quando vemos fotografias do foro privado publicadas na internet com claras segundas intenções. Quando um breve passo em falso pode ser o suficiente para nos marcar a vida inteira. São vários os exemplos, procurem-nos. Não digam que isto não é real. Faz parte do jogo ficarmos inflamados, indignados, a favor ou contra, e manifestarmos opiniões sobre aquilo que não nos diz respeito: é disso que estes programas vivem. Mas mesmo as opiniões que o espectador possa ter não são dele próprio: este pensa consoante o que é levado a pensar.

Claro que todos nós lucramos com uma maior facilidade de exposição. A democratização que a internet trouxe, por exemplo, não tem preço: até mesmo com o que podemos aprender e partilhar com quem nunca vimos. Isso não tem mal nenhum, é bom. A manutenção de alguma privacidade é, no entanto, mais do que um direito. É o que nos permite errar, experimentar e aprender por nós próprios – descobrirmo-nos sem ter ninguém que nos diga que dois mais dois são cinco quando sabemos que são quatro. Uma salvaguarda preciosa que nos liberta do que dissemos ontem porque hoje somos já outros e melhores. Testar limites sem termos medo de falhar. Ninguém consegue estar no seu melhor com uma câmara a apontar para nós vinte e quatro horas por dia, com uma voz ridícula que nos diz o que fazer a cada minuto. É grave porque estamos a falar de um tipo de manipulação declarada que nos impede de pensar por nós próprios. Apanha-nos numa corrente à qual é dificílimo escapar. É como no filme The Truman Show, quando o protagonista descobre que tudo o que aconteceu na sua vida não derivou do seu livre arbítrio: foi apenas uma marioneta utilizada em prol da vontade de uma grande produção e das audiências. Desde quando é que a inspiração real numa distopia se pode considerar entretenimento? Depois não se espantem se isto der merda!!! Coitadinho do Orwell, se ele soubesse!