Vanguarda Pop ou a importância de ser Miley

Este não é mais um artigo sobre uma artista pop que enfureceu meio mundo. É uma relativização dos seus actos numa cultura de consumo imediato e reflexão opaca. A importância de ser Miley é a de ser qualquer outra figura pública. E não acredito que as figuras públicas tenham qualquer tipo de responsabilidade extraordinária face à sociedade, pelo contrário, a sociedade tem a responsabilidade de discutir e interpretar o que a televisão mostra e a internet descontextualiza infinitamente.

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Merda d’Artista, Piero Manzoni, 1961

Não nos enganemos, quando uma figura como Miley Cyrus aparece em palco ou num vídeo a simular posições sexuais, sabemos que não há outra motivação senão o dinheiro. Sabemos também que não se trata de um acto expressão pessoal ou artística, nem de uma tomada de posição — é antes uma manobra cuidadosamente pensada por um exército de acessores, peritos de marketing e empresários. Sabemos que as Mileys, Britneys e Lanas deste mundo são produtos comerciais, e contra isso nada de realmente mau pode ser dito. A crítica que considero pertinente acontece quando estes produtos e as suas aparições nos são apresentados numa embalagem pseudo-intelectual e cultural, como resposta às polémicas previsíveis que geram. No caso de Miley fala-se da quebra dos tabus sexuais, no caso de Lana fala-se de um relato do sonho americano destroçado. É tudo treta e nós sabemos, mas esta hipocrisia ainda funciona.

Por isso mesmo entendo que haja nesta hipocrisia uma certa relevância que merece ser analisada. Toda a cultura pop funciona e evolui em pequenos passos que testam os limites do aceitável. O primeiro par de seios exibidos na televisão é o primeiro e último a chocar alguém. Depois dele, qualquer topless é aceitável. O primeiro coma alcoólico, o primeiro charro, o primeiro risco de coca num programa juvenil legitima, depois da indignação causada, uma exposição aberta do mundo do álcool e das drogas. A cultura pop vai esticando a corda do que o seu público considera adequado exibir, mas trata-se de uma corda metafórica que, na verdade, nunca se quebrará. São pequenas conquistas que se fazem face a um público generalista que se vai tornando mais permissivo a cada polémica.

No entanto, é preciso ter em conta que estas conquistas são feitas apenas perante o público desta cultura pop. Historicamente, temas como a sexualidade já deixaram de ser tabu, tendo na sociedade contemporânea recuperado este estatuto de assunto delicado. Obviamente não posso afirmar com toda a segurança que houve uma perda de um sentido liberal ideal em que o tabu não existia. Digo apenas, e de uma forma simples, que estas temas não estão a ser abordados e expostos pela primeira vez. Todas as vanguardas artísticas se basearam, sem excepção, em premissas de choque, provocação e quebra das normas sociais. Umas vezes na sexualidade, outras vezes em questões sociais e outras vezes nos próprios domínios da expressão artística. Mas a verdade é que as vanguardas existiram para nichos e são ainda hoje estudadas por nichos, se compararmos à dimensão do público que consome a cultura generalista. Os seus efeitos mais populares e reconhecidos pelo grande público são apenas as evidências estéticas e imediatas. Por isso mesmo, quando estudadas pela primeira vez por alguém nos dias de hoje, as vanguardas têm quase tanto impacto como tinham na sua época original.

Desta natural ignorância face às conquistas pretendidas pelas vanguardas, mas não só (ainda no contexto artístico encontramos desde sempre abordagens radicais a assuntos sensíveis), pode-se retirar a justificação para a relevância mediática dada aos happenings culturais que são, por exemplo, Janet Jackson ou Miley Cyrus. Trata-se de facto, de uma vanguarda pop, que vem replicar no mundo capitalista e comercial algo do que sobra do modus operandi dos movimentos históricos que puseram em causa o status quo, mas que nunca se conseguiram estabelecer por não atingirem um suficiente número de pessoas. Esta réplica acontece inconscientemente, não se trata de uma referência ou citação. Acontece também de forma interessada, motivada pelo lucro e não pelo ideal. Acontece devagar, com muitas reticências. Mas o facto é que acontece. O problema é que acontece numa dimensão imediata, sensual e superficial. Precisamente pela ausência de uma teoria ou ideal, implanta-se uma aceitação de certas imagens ou acções antes consideradas tabu, mas não se prepara as pessoas para lidar com elas. O mal não é ver a Miley nua ou um miúdo pedrado, mas antes o facto de os públicos, principalmente mais jovens, não saberem extrair daí uma mensagem. Também não é simplesmente dizer que mostrar o corpo ou consumir drogas é errado, mas antes fomentar uma atitude crítica responsável que permita tirar conclusões. É um pouco como a história de dar um peixe ao pobre ou ensiná-lo a pescar. Acreditar que isto aconteça num futuro próximo, no seio da cultura pop, é utópico, mas é um problema com o qual se deve lidar. De mente aberta, sem preconceitos. Se um dia a pornografia entrar na televisão em horário nobre, será que o tabu da sexualidade foi mesmo quebrado, ou o público foi simplesmente anestesiado pela hipocrisia vanguardista dos media comerciais?