Tempo? Vamos falar de tempo

O botas bateu as botas, esqueçam-no!!!

Se esses ontens fossem devorar os nossos belos amanhãs?” perguntava Paul Verlaine.  É muito simples, não existiriam amanhãs, certo? Se os ontens da história prevalecessem não existiriam amanhãs para lá da Primeira Guerra Mundial, penso eu. Curiosamente uma guerra que veio depois da Nova Iorque libertina. Mas a seguir ainda teríamos de sobreviver ao horror da 2ª guerra, que sucedeu, mais uma vez curiosamente, aos loucos anos 20 e à Berlim muito à frente de Marlene Dietrich. A título de curiosidade, Hitler convidou-a para entrar em filmes pró-nazistas, mas a actriz e cantora mandou-o ir dar uma volta e tornou-se numa cidadã americana.

Há outra frase que ouvi recentemente e que, confesso, me transtornou por completo, mas não posso negar que o seu âmago é totalmente verdadeiro. Tocou-me porque, de uma forma ou de outra, lá vou convivendo com essa realidade no meu dia-a-dia e não faz sentido negá-la. Não foi à toa que no dia 25 de Abril o “Melhor do que falecer” do Ricardo Araújo Pereira chegou até nós através de uma idosa nostálgica dos tempos da outra senhora, interpretada pela actriz Maria do Céu Guerra. “Eu até acredito que a liberdade seja uma coisa boa, eu é que nunca tive serventia para ela”, finalizava a senhora. Passados 40 anos, depois de um regime ditatorial, este sentimento ainda perdura em alguns de nós, “Eu até acredito que a liberdade seja uma coisa boa, eu é que nunca tive serventia para ela”.

Não vou ceder ao cliché de dizer que, sabe-se lá porque razão, temos o gene do saudosismo e gostamos de baixar a cabeça por tudo e por nada. No entanto, é verdade que a serventia para a liberdade tem de ser facultada, caso contrário não a entendemos. Tem de ser facultada, compreendida, pensada e sentida. Neste âmbito é verdade que estamos em desvantagem porque, se olharmos para a história deste país, que tem as fronteiras mais antigas da Europa, independentemente dos nossos períodos áureos em que as finanças podiam ir de vento em poupa, isso nunca se repercutiu na qualidade de vida do que é a verdadeira génese do povo português: nunca fomos convidados a formar uma opinião ou uma acção verdadeiramente cívica sobre o estado do país, nem sobre o que se passa fora das nossas fronteiras. Se analisarmos a história no seu cômputo geral, rapidamente compreendemos que só fomos verdadeiramente livres nestes últimos quarenta anos. Sejamos honestos, é pouco tempo, principalmente quando tivemos de absorver, de rompante, todos os avanços sociológicos e políticos que já estavam a ser absorvidos pelos restantes países europeus. Só assim se explica que, logo no início desta crise, tenhamos de forma tão cordata e servil engolido a expressão “vivemos acima das nossas possibilidades”. Não quero com isto dizer que algumas pessoas não tivessem vivido, de facto, acima das suas possibilidades. Não sei, nem tenho por hábito fazer generalizações dessas porque há sempre quem escape à generalização. Mas foi mais fácil implementar-se o discurso de ataque à classe média ao invés de se compreender a realidade da crise europeia e nacional. Por outras palavras, a culpa foi toda nossa porque esbanjamos, gostamos de esplanadas e trabalhamos pouco. Ideia essa que contribuiu para uma sociedade mais acusatória e conservadora. Não será a classe média e a ascensão social o garante de uma democracia? Sem ela o que fica? Um país divido entre ricos e pobres outra vez, desigual, tal como antigamente.

Muitos opinion makers da moda, quer da televisão quer dos jornais, engoliram, na altura, essa cassete, ao invés fazerem uma análise mais abrangente. Muitos deles mudaram de opinião, é verdade, e só acordaram para a realidade europeia tardiamente. Mas a culpa do que se sucedeu depois e, em parte, da vinda da troika, foi também deles. Gostávamos muito de esplanadas, é verdade, mas é também verdade que já na altura éramos o país com a maior carga horária de trabalho da Europa, à excepção da Grécia e dos países de leste como a Hungria, Polónia e a República Checa. Mandámos vir o Passos porque esse sim, é que tinha juízo e era quem ia manter isto na ordem. Todos estes lugares comuns que pululavam na altura na opinião pública convinham-lhe e conseguiu o que queria. Só assim se explica que em Maio de 2011 tenha anunciado no Expresso isto: “A mudança, hoje, está facilitada por aquilo que é o programa de ajustamento da União Europeia e do Fundo Monetário Internacional. Está muito facilitada porque aquilo que eu tenho vindo a dizer que é preciso fazer está, em parte, neste documento. (…) De certa maneira o PSD ganhou um aliado, que foi o programa de ajustamento. (…) O nosso programa vai muito para lá do programa da troika, é verdade.”

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Eu até acredito que a liberdade seja uma coisa boa, eu é que nunca tive serventia para ela

Passos chegou, viu e venceu, mas a tal reforma do estado onde está? O que fez foi mais do mesmo, através da receita arquitectou-se um assalto fiscal de que não há memória, e através da despesa cortou-se onde não se devia. No que é que isto resultou? Na destruição de 340 mil empregos, numa queda acentuada do PIB de 5 por cento, em quase 500 mil pessoas que nem subsídio de desemprego têm, mais de 300 mil emigrantes em idade de trabalho nos últimos três anos, (um valor equiparável aos dos anos 60), 35,5 por cento de desemprego jovem que depois de uma atenuação voltou a subir e 130 por cento de dívida sob o PIB. Saímos de forma limpa, sem mácula, mas como iremos reagir a qualquer oscilação do mercado com a dívida em crescendo? Se estamos tão bem porque é que ainda foi preciso mexer-se no IVA e na TSU por parte dos trabalhadores e porque é que  se continua com os cortes nas reformas? Mais uma vez mexer-se  na economia e  no rendimento de quem trabalha enquanto se baixa o IRC. Ainda queriam aumentar o subsídio de desemprego? Está bem, nós fingimos que engolimos. O mais engraçado é que parece que estas medidas foram anunciadas 15 dias depois de o Primeiro Ministro ter anunciado que estavam fora do horizonte “medidas que incidam em matéria de impostos, salários ou pensões”. Quanto ao resto parece que estamos à beira de umas eleições europeias e, para o ano, vamos ter as legislativas. Veremos, depois, quanta dessa alegria é ilusória e eleitoralista e quanta é que é real. Principalmente quando se sabe que as medidas de reposição de salários e pensões, (lembram-se da recente confusão com os cortes permanentes das pensões?) só fez parte do conhecimento da Troika na última avaliação, e parece que não ficaram lá muito contentes. Logo veremos como e quando isto irá estourar.

Mas logo no início da crise a Europa mostrou também o seu retrocesso ao trair os ideias de união e fraternidade presentes no momento da sua criação, ao fomentar uma ideia de bons e maus meninos com a figura de Merkel e Schäuble. Sobre isto só tenho a dizer que à luz das ideias democráticas que acompanharam o nascimento da União, seria impensável estas declarações de Sarkozy, “É à Alemanha e à França que cabe assumir a maior parte da responsabilidade na condução do governo económico da zona euro”. Também seria impensável e incompreesível que Merkel avisasse à imprensa que, afinal, já tem a sua proposta para a formação da Comissão Europeia. Parece que, no seu entender, o que os europeus têm a dizer nestas eleições não serve de muito. Mas, no fundo, compreende-se. São as questões fraturantes da Europa que estão em cima da mesa? Não, nem se gera discussão sobre isso. Por isso mesmo é que se torna fácil, por vezes, ceder-se aos extremismos políticos que nada fazem do que exprimir ideias básicas. No fundo, e muito lamentavelmente, é o que os grande partidos também fazem, situar as opiniões entre o preto e o branco.

Nos anos da ditadura os meninos iam descalços para escola, agora aumentam o número de escolas que alargam os horários das suas cantinas porque está a crescer o número de crianças que não têm uma refeição decente por dia. Foi essa maneira de pensar, essa forma orgulhosa de sermos forretas para cumprir tal como antigamente, que nos conduziu até aqui, a um recuo de valores sociais e democráticos que teve a sua exemplar demonstração no passado dia 14 de Março, quando se reprovavam os direitos humanos no Parlamento e se aprovavam nos nossos sacrifícios com a alteração do Código de Trabalho.

Sim, ainda não se encontrou a serventia para a nossa liberdade e anda-se um pouco à nora. Passados 40 anos escolhemos um punho técnico de ferro que afinal não serviu — a dívida está a aumentar. Tentou-se criar o mito do “homem novo que tem de se valer única e exclusivamente por si” através do empreendedorismo e a verdade é que se perdeu o que poderia ser uma boa ideia com o dogmatismo da maior parte dos empreendedores que andam por aí — o “gelatina de morango” não é o único e a verdade é que esse é o discurso vigente nas nossas faculdades. Convenhamos que se fossemos entregar o estado social a essas pessoas, o estado que garantiu a nossa democracia, estaríamos em muitos maus lençóis. Repito, poderia ser uma boa ideia se não viesse embrulhada em utopias dogmáticas e assustadoras. Por todas estas razões e mais algumas é que digo que a figura de Salazar está aí e ainda não o esquecemos. Mas Salazar morreu, está morto, o “botas” bateu as botas e não vai voltar. Esqueçam-no!

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