Tempo? Vamos falar de tempo

Nietzsche até tinha a sua razão com essa cena do eterno retorno. 

No início do livro “A Insustentável Leveza do Ser”, Milan Kundera dá a sua interpretação pertinente acerca da teoria do eterno retorno de Nietzsche, esse louco, e faz esta afirmação mais ou menos por estas palavras: “Se a Revolução Francesa se repetisse eternamente, França tornar-se-ia menos orgulhosa de Robespierre”. O que quer isto dizer? Se passássemos constantemente, na nossa história, por perseguições e derramamentos de sangue, mesmo que tenham servido causas nobres, certamente o nosso horror iria aumentar até tornar-se insustentável. Significa que como as coisas e os acontecimentos históricos só acontecem uma vez, tornam-se mais leves e, por conseguinte, é mais fácil olhar para trás e dizer, “Oh que tempos tão bons”, ou “ a ditadura nem foi tão má assim”. Só desta forma se explica que Durão Barroso tenha dito o que disse acerca da educação, “No Portugal não democrático, no Portugal pré-União Europeia e pré-Comunidade Europeia havia ensino de excelência apesar do regime político em que se vivia e isso era possível porque numa escola era desejável reforçar a própria cultura de excelência da escola. Não estou seguro que aconteça hoje o mesmo em muitas escolas portuguesas e europeias.”

foto Público

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Não quer dizer que o ensino que tenhamos seja de excelência, até porque a forma como a história nacional é contada aos alunos, por exemplo, nunca foi revista após o 25 de Abril e a verdade é que muitas obras foram tiradas do ensino do português, o que contribuiu para que muitos escritores contemporâneos ficassem esquecidos. Só há uma opção educativa de Nuno Crato, o matemático por excelência, com a qual concordo, principalmente numa altura em que as humanidades perderam peso no nosso país, (veja-se o que se está a fazer com os cursos universitários da área): a introdução, para o próximo ano lectivo, de um leque mais abrangente de autores em que os professores poderão optar, entre outros, por Herberto Helder ou Fiama Hasse Pais Brandão. Mas vamos recordar uns valores disponibilizados pela pordata, para se fazer luz nas mentes que suspiram pelo ensino do passado, e pelo passado em geral.

Em 1974, há quarenta anos, o analfabetismo era de 25%, os gastos com a educação de 800 milhões de euros, (estou a falar já na moeda actual), e o universo de licenciados circunscrevia-se a  50 mil. Foi graças à escola da democracia, em especial à pública que,  actualmente, 99,5 por cento da população sabe ler e escrever e o universo de licenciados subiu exponencialmente para 1.200.000. São muitos os licenciados? Até podem ser, mas preocupem-se em criar condições ao invés de condicionar as nossas escolhas e expulsarem-nos do país. Até nisso nos tornámos mais conservadores, como se o ensino se quisesse exclusivo e só para alguns. Mas mesmo que na era do Salazar os meus avós e os avós de muita gente não tenham tido a hipótese de seguir para além da terceira classe, ainda há quem diga que naquele tempo a educação é que era. Deve ser por isso que, afinal, seja uma coisa boa o aumento das crianças que dependem da escola para uma boa refeição e que, afinal, os estudantes universitários que não têm como pagar as propinas devessem mesmo ficar em casa. No fim de contas, trata-se de uma visão fetichista que muitas tias Jonets e alguns morangos azedos alimentam por aí — uma espécie de darwinismo do saber.

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Chegando ao final, claro que não acredito que vamos regressar aos índices de analfabetismo do passado, que vamos regressar aos bairros de lata em França e que o PNR corre o risco de ganhar cá as eleições. Não tenho jeito para anunciar fins-de-mundo.  Agora, olhando para a conjuntura global e nacional num todo, há pontos de encontro que não deixam de ser interessantes e que já foram referidos ao longo deste texto. Antes não se votava, agora vamos votar para as eleições europeias sem uma única discussão interessada no impulsionamento europeu. Há a emigração actual que se assemelha há dos anos 60 e que está a contribuir para ficarmos sem população activa. Como principal consequência estamos a ficar um país envelhecido e não se sabe como vamos descalçar esta bota. Sobre a emigração já José Rentes de Carvalho, em 1975, escrevia no livro Portugal, a Flor e a Foice, publicado só agora em Portugal, o seguinte, “De um ponto de vista social, a emigração portuguesa constitui a manifestação de uma forma de escravidão que subsiste ainda hoje. De um ponto de vista ético, a emigração portuguesa significa a negação constante do direito mais elementar da pessoa: o direito à vida no próprio país. De um ponto de vista político, a emigração portuguesa supõe a renúncia à revolta.”. Digo eu agora, num momento em que a Europa parece querer fazer má cara à imigração interna pelos crescendos dos nacionalismos, até quando a nossa emigração será sustentável?

Mas olhando agora para fora do país, quem é que se está a aguentar e de quem, no fundo, nós e a União Europeia dependemos? Se repararmos nos grandes negócios que são feitos, não temos problemas em apertar a mão a países que não primam pela democracia. Aliás, basta ver o que está a acontecer na Ucrânia e o modo como a União Europeia não tem voz para lidar com a Rússia porque estamos todos no mesmo barco e trememos que nem varas verdes.  No início do ano, o relatório da Freedom House anunciava que a democracia está em retrocesso no mundo. O artigo do Público do dia 23 de Janeiro ditava assim, “O mundo tem, hoje, mais gente com direito de voto, mas isso não significa que exista maior liberdade política ou que os direitos civis tenham aumentado. Pelo contrário, a democracia está em retrocesso e é assim que se entra em 2014”. Adivinhem quem está em primeiro lugar nessa lista… Pois é, a Rússia. Mais um extremo que está a voltar a encontrar a sua voz, o que me assusta porque há uma nova vaga de conservadorismo emergente no país. Basta lembrar a forma como sentiram a vitória de Conchita na eurovisão. E já que se fala em retrocessos democráticos, convenhamos que há muito de 1984 nesta sociedade em que é muito fácil deixar-se rasto por onde quer que se passe, “sorria, está a ser vigiado.”

Afinal Nietzsche não era tolo de todo. Não vamos voltar a ter uma ditadura Salazarista, penso eu, mas sempre que ouço alguém dizer, “os desempregados não deviam passar tanto tempo no facebook” ou “olha aquele que recebe o RSI e não tem vergonha em andar com aquelas sapatilhas”, apercebo-me que o retrocesso é real. Sempre que ouço alguém dizer que nos devemos sacrificar porque é a Alemanha que paga e nos financia, sei que o retrocesso é real, descubram agora com que era. Todas as épocas, com os seus avanços e retrocessos, estabelecem verosimilhanças com outras épocas, e é dessa forma que vamos aprendendo e desaprendendo. Devíamos olhar para trás, sim, daí o sentido da primeira parte deste texto, mas para absorvermos os avanços, não os retrocessos. Nesse aspecto é interessante saber que anteriormente algumas vozes conseguiam ser mais abertas do que a nossa. Passados quarenta anos, e porque historicamente foi há pouquíssimo tempo, é impossível não olharmos para trás e não nos repensarmos neste momento difícil. Principalmente numa altura em que 1 em 4 portugueses vive em privação material e 1 em 10 em privação material severa. Claro que ainda se percebe a nostalgia em algumas vozes, nem que seja porque sentem saudades de um passado que jamais voltará — o da infância — mas a lição a tirar disto é a seguinte: temos de criar serventia para a nossa liberdade. Ainda bem que o 25 de Abril se fez, mas não foi só num dia. Para não se perder o seu sentido e voltar a repetir-se eternamente, temos de nos revolucionar todos os dias. Só um bocadinho bastava, nem que essa revolução fosse feita na nossa relação com os outros. Quando falarem com alguém, não sejam narcisos e dêem-lhe um pouco da vossa liberdade. Só se todos formos livres é que encontraremos a nossa serventia para ela.

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