Tempo? Vamos falar de tempo

O tempo não é linear, nunca foi nem nunca será. Acredito piamente nisto, tal como acredito que a água é necessária para a matar a nossa sede. Até Eduardo Lourenço chegou a dizer que “o presente recicla tudo quanto está atrás”. Não avançamos de um determinado estado para outro sem estarmos sujeitos a um retrocesso e quem não compreende isto, tenho muita pena, mas não compreende onde reside o verdadeiro fascínio deste tempo que é o nosso. Não acreditar neste facto é não acreditar na história mas, mais importante, é não acreditar numa das essências do ser humano — não pensem que aprendemos e já está. Aprendemos, entendemos e temos a estrondosa capacidade em desaprender. É verdade que isto não tem de ser forçosamente bom nem mau. Não tem de ser sempre assim, nem quer dizer que depois desses retrocessos não possam ocorrer outros avanços, mas ignorá-los significa mantermos umas tristes palas nos olhos para o tempo. E falo tanto no tempo histórico como no nosso tempo pessoal, enquanto indivíduos.

Provar que o tempo não anda em linha contínua parece difícil, certo? Mas olhem para trás e reparem na Nova Iorque da viragem para o século XX, a Big Apple que Theodore Roosevelt teve dificuldade em controlar. Se fizessem uma viagem no tempo e visitassem Berlim antes de Hitler chegar ao poder, não tenho dúvidas que refutariam de imediato as ideias feitas que temos, actualmente, acerca dos alemães. Essa Berlim que, muito curiosamente, também deu um interessante contributo para o desenvolvimento das vanguardas artísticas, como o expressionismo, bem como para o conhecimento científico. Basta lembrar que, se grande parte dos intelectuais e cientistas não tivessem escapado da Alemanha por medo do nazismo, o futuro da bomba atómica poderia ter sido outro.

Nova Iorque 1900-1915

Nova Iorque 1900–1915

Quanto ao nosso país, podemos olhar para trás, muito para trás, e relembrar que Lisboa, por exemplo, já era um ponto de encontro entre várias culturas desde o Renascimento, desde a altura em que Camões partiu para o seu exílio. Um porto onde se poderiam encontrar pessoas das mais diversas proveniências e não, não é ao acaso que dizem que o povo português é mestiço por natureza. Numa entrevista que o poeta e romancista Helder Macedo deu ao canal Q, há relativamente pouco tempo, focou-se, até, o descontentamento do autor dos Lusíadas face aos bordéis que encontrou em Goa — as prostitutas não entendiam Petrarca, queixava-se Camões. Poder-se-ia considerar, a partir daí, que as homónimas de profissão portuguesas tinham conhecimentos culturais e usavam-nos na hora de “trabalhar”, digamos assim. Era só mais uma pequena prova de que nesta altura as vanguardas culturais fervilhavam no nosso país. Mas depois veio a Inquisição. Relembro isto porque, actualmente, os programadores de televisão temem uma rebelião das donas de casa se a Fátima Lopes faltar ao programa da tarde e acham, sabe-se lá porque razão, que só têm capacidade para entenderem o Goucha e as lições de economia do Camilo Lourenço. Quanto à Nova Iorque do vício e da prostituição nem Teddy Roosevelt conseguiu controlá-la, nem mesmo com ataques indirectos aos seus cidadãos. Sabiam que foi devido à proibição da venda de álcool, que passou a ser permitida apenas em hotéis, que a prostituição se expandiu ainda mais? É fácil de entender o porquê. Muitos estabelecimentos, para continuarem a vender álcool, implementaram quartos nos seus edifícios que foram bem aproveitados pelas prostitutas que vagueavam pelas ruas — as mesmas que queriam erradicar. Elas agradeceram o refúgio que lhes foi oferecido, pois passaram a ter um local permanente de trabalho. Esta sei-a devido a uma série que segui no Canal História, “Assim nos mudou o sexo”.  Foi através deste documentário repartido em cinco ou seis episódios, (já não sei precisar e a pesquisa não me está a ajudar), que soube outra coisa bastante interessante: já no tempo em que as cidades-estado andavam à traulitada na Grécia Antiga, o facto de se ser homossexual era algo vantajoso para se aceder ao exército da cidade-estado de Tebas, isto porque os laços de camaradagem eram reforçados e a vontade em proteger os colegas na hora de combate era maior. Acaba por ser irónico se pensarmos na discussão gerada em torno das Forças Armadas americanas para se saber se, de facto, alguém com uma orientação sexual diferente terá, ou não, a mesma capacidade em combater: os gregos que lhes expliquem outra vez. Por cá, os laranjinhas petizes lembraram-se do referendo, mas mesmo que essa ideia não tenha ido para a frente, a lei da co-adopção não foi aprovada. Mais uma vez, gostaria de saber o que é que se discutiria se esta questão fosse abordada na Antiguidade clássica.

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Ainda não ensandeci, calma, nem quero regressar àqueles tempos. Estou consciente das imensas falhas dessas épocas e não preciso que mas recordem. Mas é por ser uma acérrima defensora dos valores sociais, humanos e culturais que estas questões sociológicas referidas se tornam tão curiosas. Em especial quando há pouco tempo, em Fevereiro, a União Europeia ponderava criminalizar a compra e venda de sexo, por outras palavras, penalizar os clientes. É fácil perceber que isto iria levar à clandestinidade e atirar estas mulheres para um submundo nada bonito em que há de tudo menos direitos próprios. Será necessário o Teddy Roosevelt ressuscitar dos mortos e explicar aos nossos governantes que com proibições destas não vamos lá? Que o resultado pode ser o oposto do esperado? Acerca das migrações, talvez fosse proveitoso que Camões regressasse outra vez e nos falasse da Lisboa multicultural em que viveu até chegar a Inquisição, numa altura em que até as prostitutas pescavam alguma coisa de poesia. Talvez os avanços dos nacionalismos por essa Europa fora (veja-se o referendo da Suíça e o triste caso da França) recrudescessem. É curioso estarmos a assistir a esta crescente vaga de nacionalismo bacoco na Europa quando nos dizem a nós para nos fazermos à vida lá fora. Quanto aos nacionalismos do nosso país, quero recordar-vos aqueles tristes cartazes de campanha do PNR  que ditavam “Boa viagem”, com um aviãozinho a ilustrar, como se olvidassem o facto do povo português resultar dessa própria miscigenação e intercâmbio de culturas diferentes. Como se nós próprios nunca emigrássemos. Camões que lhes fale da sua Lisboa mais uma vez, que olhem para a própria Lisboa em que vivem e tenham respeito por todos os emigrantes portugueses que estão a tentar ganhar a vida lá fora. Andam sumidos, mas a verdade é que nas últimas autárquicas conseguiram, pela primeira vez, marcar presença em sete municípios e nas últimas eleições legislativas conseguiram o seu melhor resultado. E relembram-me agora, e muito bem, então os resultados do MRPP? É o outro lado da moeda, sim, e não tenho simpatia por extremos, mas tenho um medo inconsciente dos nacionalistas. Quando era pequena a minha mãe dizia-me, “ou comes a sopa ou o papão leva-te.” Agora é “ou encontro a cama feita ou o José Pinto Coelho vem cá e leva-te!” E resulta…

Mas já que estamos a falar de extremos e de nacionalismos, 40 anos depois do 25 de Abril começam a ser crescentes as vozes que querem voltar ao antigamente, implicita e explicitamente. Estou a ser excessiva? Esta semana tive o grande choque da minha vida quando li “aquela” reportagem no Observador, o novo jornal online de António Carrapatoso, Rui Ramos e José Manuel Fernandes. Claro que não sou ingénua e sei o que os estes nomes, só por si, significam. Não estava era à espera que só em dois dias de existência o jornal aproveitasse para publicar duas peças sobre um tipo abjecto nazi, ainda com os mesmos ideias e aspirações políticas. Não quero estar aqui a fazer-lhe publicidade e nem quero escrever o seu nome, mas 40 anos depois do 25 de Abril isto é, para mim, incompreensível. Mais incompreensível ainda era a leveza com que os seus crimes eram relatados, com se um “fofinho” que, coitado, sem se saber porquê, deu-lhe para ter aquelas ideias. Atenção, não estamos a falar de um jornal de bairro. Se ainda acreditamos na imprensa como algo basilar para a formação de consciências, isto tem de ser apontado porque sim, é perigoso. Tratou-se de uma campanha subliminar a um novo partido político que essa pessoa lidera e que não se desvia das crenças que tinha antes de ser preso. Mas a todas as pessoas que anseiam pelo passado só tenho uma coisa a dizer…

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